Rio 2, de Carlos Saldanha,é um desses casos em que é inevitável falar não apenas do filme, mas sobretudo do que está em torno dele. E o que está em torno dele é o Brasil, nada mais nada menos.
Do ponto de vista da técnica e da linguagem haveria pouca coisa a obstar nessa animação extremamente competente, inventiva e divertida. A boa amarração dos vários focos narrativos, os números musicais de um delírio geométrico à maneira de Busby Berkeley, o ritmo contagiante, o humor sagaz, as referências jocosas que vão de Shakespeare a Gloria Gaynor (“I will survive”), a exuberância da luz e das cores, tudo funciona quase à perfeição para configurar um entretenimento honesto e eficaz.
E o eixo central da história – a desastrada tentativa do urbano Blu de se adaptar à vida selvagem com sua pochete, seu GPS e seu canivete suíço – garante o interesse e a diversão.
Qual o problema, então? O problema é o Brasil. Vou ver se me explico.
Festa oficial
Nesta continuação, que se passa quase toda na selva amazônica, o Rio de Janeiro só aparece no começo, durante as comemorações do Réveillon e a preparação para o Carnaval. Aí começa a encrenca. Como vocês talvez se lembrem, houve uma grande controvérsia no último Réveillon carioca, pelo fato de toda a decoração e programação visual da festa oficial em Copacabana ter ficado a cargo da Fox e girado justamente em torno de… Rio 2, o filme, numa promiscuidade no mínimo desagradável entre coisa pública e interesses privados.
Três meses depois da polêmica, Rio 2 entra em cartaz em nada menos que 1.270 salas, ou seja, exatamente metade de todo o mercado exibidor brasileiro. Um verdadeiro rolo compressor.
Claro que o filme em si não tem nada a ver com isso. Ou talvez tenha, de uma maneira indireta. Pois, se o primeiro Rio (2011) já trazia um certo gosto turístico-pitoresco que fazia lembrar o Alô, amigos (1942) de Disney e a política da boa vizinhança EUA-América Latina, o segundo reforça essa vocação ao abraçar a mata tropical e eludir as complicações da realidade urbana.
Em outras palavras: depois de meses a fio de manifestações, confrontos violentos e dilaceração social, seria muito mais difícil manter uma imagem idílica do Rio como terra de um povo sorridente e cordial. Não que os realizadores tenham planejado previamente essa saída pela tangente. Afinal, uma produção como essa deve ter começado a ser concebida bem antes das primeiras manifestações e confrontos, em junho passado. Mas essa fuga para a selva acabou sendo providencial.
Ecologia e futebol
Afinal, exceto por alguns madeireiros e pecuaristas desalmados, quem pode ser contra a defesa da natureza, das araras azuis (ou vermelhas, ou verdes), das cacatuas, tamanduás e bichos-preguiça? (Note-se, a esse propósito, que no filme todos os animais inicialmente inimigos e/ou vilões acabam se revelando “do bem”, pois estão todos no mesmo barco, ou melhor, no mesmo ecossistema ameaçado.)
Curiosamente, a única passagem de Rio 2 em que há uma visível forçação de barra talvez tenha a ver com esse contexto político-cultural extrafílmico. Estou me referindo à disputa de território entre araras vermelhas e azuis que se dá por meio de… uma partida de futebol.
Ora, o futebol hoje voltou a ser sinônimo de Brasil, por conta da Copa do Mundo (e não deve ser casual que, na sua ziguezagueante trajetória para a mata, os protagonistas passem por várias cidades-sede). Mas o futebol também está hoje no centro da discórdia: a palavra de ordem “Não vai ter Copa” ressoa em várias capitais, por conta de prioridades nacionais que estariam sendo relegadas a segundo plano diante da orgia de investimentos e desvios visando ao Mundial.
Nada disso tira os méritos de Rio 2, mas é sempre bom ter em conta que os filmes não surgem nem se desenvolvem no vácuo, mas em circunstâncias históricas e sociais bem definidas, e com elas dialogam.
Rio em chamas
Se a cidade do Rio de Janeiro está quase ausente de Rio 2, ela transborda por todos os lados de Rio em chamas, longa-metragem coletivo composto por uma colagem de segmentos, sob a coordenação geral do cineasta, crítico e professor Daniel Caetano.
É uma obra híbrida, urgente e irregular, que entrelaça material documental, trechos encenados, depoimentos, ensaio, intervenção experimental, reportagem etc. Em meio a uma massa impressionante de som e fúria da cidade conflagrada, material sem dúvida necessário para resgatar e discutir um momento de inflexão na história carioca, o que mais me agrada é talvez o que está nas bordas, a loucura e a diversidade cotidianas, a vida torta e contraditória que pulsa nas ruas com ou sem manifestações diretamente políticas. A cidade como laboratório de experiências sociais, culturais, existenciais.
De resto, Rio em chamas é em tudo o oposto de Rio 2: em contraste com os milhões de dólares deste, deve ter custado uns poucos milhares de reais; em vez das 1.270 salas que exibem a animação, será visto nas brechas de um circuito mais do que alternativo. Será mostrado em 28 de abril no cine Odeon, na Cinelândia, ocasião em que cada espectador ganhará um DVD do filme. Antes, trechos serão projetados ao ar livre, em frente à Câmara Municipal. Depois, Rio em chamas irá para a internet e será exibido em tendas culturais, cineclubes, associações de bairro etc.
Em tempos de associação promíscua entre o poder político, o poder econômico e a mídia, a guerrilha cultural é quase uma imposição.