Clique aqui para ver a carta anterior
Caro Sérgio,
Eu hoje não estou bom, como dizia o combativo sindicalista João Ferrador, memorável criação do cartunista Laerte. Tudo isso porque uma simpática amiga virtual “postou” (detesto esse verbo, aliás) no Facebook um meloso texto apócrifo de autoajuda e o atribuiu a Carlos Drummond de Andrade.
Como você certamente sabe, Drummond é, ao lado de Borges, Clarice Lispector e Fernando Pessoa, uma vítima preferencial dessa praga de nossa época, que consiste em difundir os mais piegas lugares-comuns (geralmente sobre a “busca da felicidade”) como se tivessem sido produzidos por grandes escritores. Ora, vão se catar. Quem faz isso devia ser preso para o resto da vida.
Por falar em Pessoa, passei o último fim de semana vendo filmes portugueses em Cataguases, terra de Humberto Mauro, como jurado do festival Cineport, que acontece em setembro na Paraíba. Mas isso não vem ao caso. O fato é que, entre os longas que eu vi, estava o Filme do desassossego, de João Botelho, inspirado no Livro do desassossego, de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa.
Isso me incentivou a ler o livro, até então uma de minhas muitas lacunas, e nele me deparei com a seguinte passagem: “A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras – poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte deixou de ser tida como criação, para passar a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimento”.
Descontada certa nostalgia dos “ideais clássicos”, penso que esse trecho diz muito sobre os dias de hoje. A facilidade de divulgar qualquer coisa pela internet – de vídeos domésticos a textos pseudoliterários – fez de cada indivíduo um “artista em busca do seu espaço”. Com as exceções de praxe, a comodidade proporcionada pelos meios tecnológicos gerou um comodismo formal, uma enorme preguiça técnica e uma espantosa autocomplacência.
Claro que todo mundo tem o direito de expressar seus sentimentos – e ressentimentos -, suas ideias banais ou extravagantes sobre a vida na terra. Para isso existe a mesa de bar, a roda de amigos, o ombro da namorada ou do namorado, o divã do psicanalista, o velho diário pessoal. Mas a arte, a arte é outra coisa.
Basta ler uma estrofe de João Cabral de Melo Neto, ou um parágrafo de Guimarães Rosa, ouvir uma frase musical de Tom Jobim, ver um travelling de Stanley Kubrick, para imaginar quanto de esforço intelectual, quanto de educação dos sentidos foi investido ali, para além do talento natural de seus criadores.
Temo que me chamem de elitista, acadêmico ou passadista, mas concordo com o artista plástico Luiz Paulo Baravelli, que uma vez declarou que “há arte demais no mundo”. Ele se referia a certas capas de livros que se enfatiotam de signos poéticos e referências estéticas para parecer “artísticas”. Mas a ideia pode se estender para todos os campos da criação, até mesmo para o futebol, onde não é difícil distinguir o verdadeiro artista do mero firuleiro.
Os novos meios de captação e difusão de imagens e de sons são ferramentas preciosas nas mãos dos verdadeiros criadores – penso no grande Eduardo Coutinho, cujo cinema documental voltou a florescer na maturidade por conta das câmeras digitais -, mas também, como efeito colateral, geraram uma miríade de infelizes “se expressando” canhestramente, inundando o mundo com uma poluição estética que torna cada vez mais difícil – e indispensável – separar o trigo do joio.
Puxa, falei demais. Mas é só porque não aguentei ver o Drummond ser sacaneado sem poder se defender.
Gostaria de saber o que você pensa sobre esses assuntos.
Grande abraço,
Zé Geraldo