Ora, direis, fazer livros

serrote

12.07.11

Todas as histórias de editores se parecem, acreditem neste velho viciado em memórias e narrativas sobre aqueles que ganham a vida fazendo livros. Começam sempre com jovens idealistas e, muito frequentemente, terminam de forma melancólica, com as altas aspirações vencidas pela letra fria do livro-caixa, que se impõe em falência ou, ultimamente, nas tentaculares fusões. Entre uma coisa e outra costumam misturar-se anedotas saborosas sobre grandes descobertas de autores, fracassos históricos ou miopia editorial – estes dois últimos elementos fundamentais para temperar histórias em geral narradas em torno das conquistas de seus protagonistas.

É e não é muito diferente disso o que se lê em Um certo Henrique Bertaso, crônica deliciosa que lembra a importância da velha Editora Globo, de Porto Alegre, na civilização de nossos arraiais literários. Em comum com a tradição editorial, está a montanha russa da vida editorial; diferente dela, o fato de o autor ser Erico Verissimo, ele mesmo parte essencial de uma historia na qual, ironicamente, pespegou o subtítulo Pequeno retrato em que o pintor também aparece. Ao escrever a vida de Bertaso, Verissimo escreve sua própria vida, com notáveis concisão e humor.

Entender o que foi a Globo dos anos 1930 aos 1960 é entender o encontro de Henrique, filho de livreiro de Porto Alegre que deixou de simplesmente vender livros para fazê-los, com Erico, jovem empregado de uma farmácia em Cruz Alta, no interior do Rio Grande, que lia Ibsen “entre a venda dum envelope de cafiaspirina e a dum vidro de xarope contra a tosse”. Quando o primeiro aprendeu que livro “não se trata apenas de papel impresso”, o segundo, cabeça cheia de aspirações literárias, passou a ganhar a vida fazendo o que não sabia: a edição da Revista do Globo, publicação literária também produzida pela casa, e traduções do que lhe aparecia pela frente.

Henrique e Erico formaram uma dessas duplas perfeitas: um cuidava dos números, outro das letras. Mas, como é comum nos encontros decisivos, um contaminou-se pela habilidade do outro, tramando juntos coleções, novas traduções, a busca de autores, formas de vender os livros. Botaram em marcha, juntos, uma empreitada que é difícil em qualquer época. E ainda havia um agravante, um pequeno detalhe: o Brasil da década de 1930. E, ainda por cima, o Brasil visto da Porto Alegre de então, no dizer de Erico uma província dos pontos de vista geográfico e psicológico.

Atrair autores para a nova editora ao extremo sul da “Corte”, que é como Verissimo se refere ao Rio e São Paulo e a catálogos poderosos como o da José Olympio de então, não era brincadeira. A solução, clássica, era começar pelos estrangeiros e aí a Globo deu seu primeiro pulo do gato: por gosto e formação, Verissimo destoava da francofilia dominante na vida literária brasileira, interessando-se sobretudo por norte-americanos e ingleses. Foi assim que, em 1935, aparecia pelo novo selo o Contraponto de Aldous Huxley. E, no mesmo raciocínio vieram Sinclair Lewis, John Steinbeck, Conrad, Robert Graves, Willa Cather, Katherine Mansfield, Willa Cather e outros pesos-pesados, muitos com tradução “caseira” de um certo Erico Verissimo.

A tradução era, portanto, uma arte para os jovens editores gaúchos. Que transformavam o livro-caixa num quebra-cabeças com seu método de trabalho. O tradutor contratado dispunha, na editora, de uma completa biblioteca de dicionários e gramáticas. A primeira versão era submetida a um “especialista na língua” para confronto com o original. A esta leitura, seguia-se uma outra, em que se discutiam as adequações de estilo entre tradutor e autor. Resultado: o procedimento, perfeito do ponto de vista técnico, durou cinco anos e teve que ser repensado para não arruinar a casa editorial.

Os corajosos editores não deixaram de dar suas mancadas. Compraram os direitos e jamais publicaram O pequeno príncipe, com uma justificativa típica de qualquer editora: o romance de Saint-Exupéry era ilustrado, categoria de livro que não estava nos planos editoriais imediatos. Nada estranho para um mundo que desde sempre tenta, como reflete Verissimo, conciliar a necessária gratuidade da arte com planejamentos editoriais e comerciais.

Verissimo escreveu e publicou Um certo Henrique Bertaso em 1972. Morreu em 1975, seu personagem-amigo em 1977. Na década seguinte, a editora passou para o controle das Organizações Globo. Ainda hoje estão em catálogo muitas daquelas edições tramadas à margem da Corte, por dois jovens idealistas. As histórias de editores se parecem, eu avisei lá em cima. Mas nunca são iguais. Ainda mais contadas dessa forma.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: Henrique Bertaso e Erico Verissimo em 1960

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