Costumo dizer que só tenho um modo de ler Guimarães Rosa: com a garganta fechada, vencendo a emoção a cada linha. Ou não vencendo.
Foi o que, há muitos anos, eu disse a Lya Cavalcanti (1907-1998), jornalista e grande amiga do escritor, para quem ele fazia questão de ler tudo o que escrevia antes de publicar. Foi assim que durante quatro horas seguidas, de Cordisburgo, sua cidade natal, e por telefone, Rosa, como Lya o chamava, leu para ela todo o “Campo geral”, novela que integra Corpo de baile, lançado em 1956.
A leitura só era interrompida quando Guimarães Rosa pedia para resolver o inadiável, ocasião em que Lya aproveitava para fazer o mesmo, e comer uma fruta. Nesse mesmo ano foi publicado Grande sertão: veredas, que o grupo do Clube de Leitura do IMS leu em junho, sob orientação do professor Eduardo Coutinho.
Na sua apresentação, reproduzida abaixo dos arquivos da Rádio Batuta, o professor ressalta a tríplice travessia que se percorre no livro: a travessia físico-geográfica; a existencial, que se realiza por meio da vingança de Hermógenes, assassino de Joca Ramiro, e a travessia da linguagem.
“Forte coisa e comprida demais seria tentar fazer crer como foi ditado, sustentado e protegido – por forças ou correntes muito estranhas” – assim resumiu Guimarães Rosa o processo criativo dessa obra-prima da literatura brasileira que este ano completa sessenta anos de publicação.
Foram justamente essas “forças ou correntes muito estranhas”, assunto especialmente do gosto de Lya Cavalcanti, que, de início, ligaram os dois amigos. Conheceram-se durante a Segunda Guerra Mundial, quando ela era jornalista correspondente na BBC em Londres, transmitindo para o Brasil. Naquela época, Guimarães Rosa, diplomata, servia em Bruxelas e, certa vez, esteve em Londres, ocasião em que foram apresentados um ao outro. A cumplicidade estabeleceu-se de imediato. Conversas a respeito do sobrenatural se estendiam noite adentro até que, de volta ao Brasil, Lya se converteria em uma das leitoras essenciais do escritor.
Ao ler Grande sertão: veredas, ela pôde entender por que o amigo lhe confidenciara que, enquanto trabalhava no livro, tinha a sensação de “represar os oceanos”. Ou de comer o Pão de Açúcar a colheradas – dizia ele. Com a metáfora expressara a urgência de contar a história de Riobaldo, jagunço que, ao relatar fatos da juventude, quando lutou para vingar a morte de Joca Ramiro, tenta entender a sua própria trajetória, trazendo o leitor para o centro das grandes questões existenciais.