Resquícios de civilização

Vida Contemporânea

04.09.18

O fetiche do natural

Numa discussão recente, internautas debatiam se o ciúme era natural ao ser humano ou uma construção social – uma daquelas questões sem solução definitiva. Apesar das calorosas defesas de cada ponto de vista, não é ilícito afirmar que o ciúme é uma reação natural ao nosso modelo de relacionamento, que neste mundo secular não funciona para todos por ser baseado na concepção de posse, esta sim uma construção social.

Podemos falar o mesmo de outros comportamentos. Os transtornos de ansiedade, atualmente tão comuns, podem ser uma reação natural à utopia das respostas imediatas e das infinitas, porém irrealizáveis promessas da conexão ilimitada; a paranoia, uma reação natural ao bombardeio de notícias sobre a violência; a raiva, aos desejos maiores que os recursos, à brutalidade alheia, à letargia. Em se acreditando que já nascemos aptos a sentir tudo isso, a ansiedade, o medo e a raiva poderiam funcionar como mecanismos de defesa naturais, não houvessem se transformado nas próprias doenças.

O problema dessa discussão, no entanto, é a noção subentendida de que qualquer construção social seja, em si, negativa. Nos últimos tempos, o “natural” vem sido vendido como intrinsecamente bom, em oposição ao urbano, planejado, produzido. Os alimentos orgânicos seriam melhores porque não contêm aditivos químicos; os medicamentos homeopáticos, porque não viciam ou envenenam o corpo; os comportamentos naturais, porque genuínos. Em contraponto, o inquestionavelmente ruim seria uma construção social.

 

A força que nos freia

No livro Civilização (1979, tradução de Madalena Nicol), baseado na clássica série televisiva de mesmo nome, o inglês Kenneth Clark (1903-1983) utiliza a história da religião, da literatura, da filosofia, da ciência e da arte para investigar os fundamentos da civilização europeia. Sua única preconcepção é que a civilização é preferível à barbárie. Clark aponta, entre esses fundamentos, um sentido de permanência, um ideal de eternidade, a cortesia, o controle do próprio destino, o amor ao belo, o internacionalismo, a imposição da ordem ao caos, a conversa por prazer, a busca pela felicidade, “a capacidade de empatia com todo tipo e toda classe de homens e de tolerância para com a diversidade humana”.

Podemos afirmar também que a civilização nos impele a frear muitos de nossos impulsos egoístas e violentos – primitivos, genuínos, naturais. Em cada pessoa reside uma fera que, no mais das vezes, cochila exatamente por conta das restrições impostas por um contrato social.  Em comunidades onde esse pacto de convívio foi quebrado ou onde ele jamais existiu, a violência predomina. Mas mesmo numa sociedade vigilante é sempre fina a corrente que prende nossa besta interior. “Por mais complexa e aparentemente sólida que seja”, afirma Clark, “na verdade ela é frágil”.

 

 

Semente de barbárie

Ao abordar o período da Revolução Francesa, Clark cita o vitoriano John Ruskin: “Nenhuma grande arte surgiu no mundo, a não ser entre nações guerreiras.” Pensamento que seria parafraseado pelo personagem Harry Lime, na contribuição de Orson Welles para o roteiro de O terceiro homem (Carol Reed, 1949): “Na Itália, por trinta anos sob os Borgias, eles tiveram guerra, terror, homicídio e derramamento de sangue, mas produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e o Renascimento. Na Suíça tiveram amor fraterno – tiveram quinhentos anos de democracia e paz, e o que produziram? O relógio-cuco”.

Mesmo nas civilizações mais “desenvolvidas”, a barbárie está sempre à espreita. Dos filósofos humanistas aos antropólogos, dos relatos dos exploradores aos romances distópicos, de Euclides da Cunha a W. G. Sebald, de A arquitetura da destruição a O deus da carnificina, frequentemente somos lembrados de quão próximos estão esses extremos; chega a ser um tropos da ficção das últimas décadas o personagem extremamente refinado que comete atrocidades. Um dos primeiros a por em cheque não apenas a sociedade ocidental, como a observar com olhos mais generosos as ditas sociedades “bárbaras”, foi o francês Michel de Montaigne (1533-1592).

“Não temos outro critério de verdade e de razão além do exemplo e da forma das opiniões e usos do país em que estamos”, afirma o filósofo no ensaio “Sobre os canibais” (tradução de Rosa Freire D’Aguiar). “Nele sempre está a religião perfeita, o governo perfeito, o uso perfeito e consumado de todas as coisas”. Nossa ideia de civilização, portanto, está atrelada a parâmetros que talvez não sirvam para outros povos. Não podemos nos esquecer que o próprio significado original da palavra “bárbaro” era “aquele que não fala grego”.

Montaigne ainda contrasta a cultura dos canibais com a própria barbaridade praticada pelo civilizado ocidental: “podemos muito bem chamá-los de bárbaros com relação às regras da razão, mas não com relação a nós, que os ultrapassamos em toda espécie de barbárie”. Apesar de parecer assombroso, qualquer um que tenha acesso ao noticiário atesta com facilidade que mantemos resquícios do barbarismo mais pedestre. A vida contemporânea se tornou demasiado complexa, já anunciava o personagem de Ionesco. Talvez provenha disso o mal-estar na civilização e o apego ao natural, que nos séculos seguintes cresceria com Rousseau, os poetas românticos e os ambientalistas.

 

A escuridão, a mudez, a dor de dente

Duas noções conflitantes a respeito da História frequentam nosso imaginário. Uma delas reza que o avanço cronológico é uma evolução, e estamos sempre no cume da História. Herdeiros de desastres e sucessos das ações do passado, olhamos para trás com o privilégio de conhecer seu futuro; sabemos qual crítico estava errado, qual ideia continuou instigante, qual teoria científica seria comprovada. Intui-se, com essa noção, que se algo não resistiu às fustigadas do tempo, foi porque não mereceu, o que poderia justificar a morte de outras civilizações. Aqui se ignora aqui que diversos são os fatores para a sobrevivência. Há algo de casual – e de intencional – na permanência. Não estamos no cume, apenas no ponto mais alto até agora; mas ainda há o que subir, nessa trilha encoberta por névoa.

Em oposição a essa noção, muitos sentem que qualquer tempo passado foi melhor, como disse Jorge Manrique. E se o modelo civilizatório que herdamos carrega resquícios de barbarismo, logo, não seria um bom modelo. A questão é que não existe um modelo ideal. É o melhor dos tempos, é o pior dos tempos. Todas as épocas e lugares têm problemas específicos, e as pessoas do passado também idealizavam um Passado anterior ao delas, sensação bem traduzida em Meia-noite em Paris, de Woody Allen. É mais reconfortante pensar que qualquer tempo futuro será melhor, mas alguém haverá de sentir saudades destes nossos dias terríveis enquanto vivencia outras conquistas.

Na verdade, não é impossível viver de modo semelhante ao de alguma época do passado. Para isso, basta abrir mão das conquistas posteriores a ela, não apenas as tecnológicas, mas também as do pensamento. Seria possível, para um cidadão civilizado, suportar a carne crua, a escuridão, a mudez, a falta de passado e de futuro e a dor de dente? “Além de saneamento, medicina, educação, vinho, ordem pública, irrigação, estradas, sistema de água potável e saúde pública, o que os romanos já nos trouxeram?”, diz um conspirador revoltoso no filme A vida de Brian (Terry Jones, 1979). Antes uma civilização com resquícios de barbárie que uma barbárie com resquícios de civilização.

, , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,