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Leonardo Sbaraglia em cena de O fim do túnel

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Leonardo Sbaraglia em cena de O fim do túnel

A aventura mora ao lado

No cinema

07.10.16

Já se tornou lugar-comum falar de uma suposta superioridade do cinema argentino sobre o brasileiro e atribuí-la à excelência dos roteiros na produção do país vizinho. Não compartilho dessa visão, que me parece distorcida e parcial, mas quem a defende encontrará um forte argumento em No fim do túnel, de Rodrigo Grande.

Trata-se de um policial intrincado e violento, que transita entre um realismo cru e uma atmosfera por vezes onírica (de pesadelo, no caso), com uma segurança narrativa admirável. Acentua essa sensação de diversas dimensões do real o fato de a ação se passar quase toda nos vários andares de uma grande casa portenha, do subsolo ao terraço da cobertura. Cada um desses níveis é impregnado por uma carga afetiva, uma temperatura dramática, uma tensão específica.

Tudo começa quando um homem solitário e paraplégico, Joaquín (Leonardo Sbaraglia), num dia de forte chuva, abre a porta para uma jovem dançarina de boate, Berta (Clara Lago), acompanhada da filha de seis anos. A moça diz ter-se interessado pelo anúncio de um quarto para alugar e, antes que Joaquín diga qualquer coisa, instala-se na casa com a filha.

Por fragmentos de imagens, fotos e breves flashbacks (sobretudo sonoros), ficamos sabendo que Joaquín perdeu mulher e filha pequena, provavelmente no mesmo acidente automobilístico que o aleijou. Restos dessa vida pretérita encontram-se, como ruínas abandonadas, em meio ao mato que tomou conta do descuidado jardim dos fundos da casa.

Paralisia e ação

No porão, Joaquín conserta aparelhos eletrônicos. Utilizando-se de seus aparatos e de sua expertise, ele descobre que um grupo de pessoas, no subsolo contíguo, constrói um túnel e planeja um roubo espetacular do banco da rua. Desdobram-se então os mistérios a seu redor: essa Berta surgida do nada, esses assaltantes. As novidades o despertam abruptamente do longo torpor em que estava encerrado.

Há um pouco de Janela indiscreta aqui. Como no clássico de Hitchcock, um cadeirante perscruta a vida alheia, descobre um crime e inquieta-se por intervir, envolvendo o espectador em sua angústia. Com a diferença de que, em No fim do túnel, o protagonista abandona a postura passiva e, a despeito de suas limitações, resolve agir fisicamente.

Antes de prosseguir, uma observação lateral: é curiosa essa reiteração, no cinema argentino contemporâneo, de situações dramáticas suscitadas pela contiguidade espacial: O homem ao lado (de Mariano Cohn e Gastón Duprat, 2009), Medianeras (Gustavo Taretto, 2011) e agora No fim do túnel.

Trama em parafuso

Os psicanalistas decerto teriam muito a dizer sobre as significações ocultas de subsolos, túneis, alçapões, corredores e portas trancadas no filme de Rodrigo Grande. Mas o interessante aqui é como se articulam essa trama policial (que remete a tantos filmes de assaltos mirabolantes) e o drama afetivo/psicológico do protagonista, que evolui em espiral (ou antes, em parafuso) até atingir um paroxismo de violência e humor negro digno de um bom Tarantino.

Thriller, melodrama, comédia absurda, em algum momento tudo se funde de modo vertiginoso, sem uma preocupação excessiva com a verossimilhança. E, como acontece na melhor produção argentina das últimas décadas, a observação das contradições sociais aparece de modo sutil e indireto.

A câmera do diretor desliza com desenvoltura explorando os espaços, mas quase nunca revelando-os por inteiro. Há sempre algo de truncado, de parcial, de obstruído ou oculto, o que contribui decisivamente para o efeito do filme. Haverá quem critique, como artificial e arbitrário, o aparente final feliz. Mas, por tudo o que veio antes, não deve ser difícil perceber que ele está ensopado de sangue e ironia.

Festival do Rio

Não é fácil se mover com segurança num mar de filmes inéditos como o Festival do Rio. Convém deixar algum espaço para os riscos e surpresas, mas é sempre bom contar com algumas apostas seguras. Aqui vão algumas delas.

Entre os consagrados em festivais internacionais, destacam-se Eu, Daniel Blake, o novo drama socialmente engajado de Ken Loach, vencedor de Cannes, e o coreano Você e os seus, de Hong Sang-Soo, uma releitura de Esse obscuro objeto do desejo, de Buñuel, premiada em San Sebastián. Há ainda Personal Shopper, de Olivier Assayas, em que Kristen Stewart vive uma assessora de moda de uma celebridade e médium nas horas vagas. Ganhou o prêmio de direção em Cannes.

Merece atenção o novo do filipino Lav Diaz, A mulher que se foi, muito bem recebido no festival de Veneza, apesar de suas quase quatro horas (duração até modesta, comparada à de outros filmes do cineasta).

Jim Jarmusch comparece em dose dupla, com o documentário Gimme danger, sobre a banda de rock The Stooges, e a ficção Paterson, sobre um motorista de ônibus e poeta. Há ainda os novos de Werner Herzog (o documentário Eis os delírios do mundo conectado) Andrzej Wajda (Afterimage, sobre um pintor dissidente do regime comunista), Xavier Dolan (É apenas o fim do mundo, grande prêmio do júri em Cannes), Paul Schrader (Dog eat dog), Bertrand Bonello (Nocturama) e Bruno Dumont (Mistério na Costa Chanel). Não se deve desprezar também Jovens loucos e mais rebeldes!, o novo de Richard Linklater, o diretor de Boyhood.

Brasileiros

No front nacional, os obrigatórios são Era o Hotel Cambridge, vibrante misto de documentário e ficção de Eliane Caffé sobre ocupações de prédios por sem-teto em São Paulo; BR-176, evocação irônica e nostálgica de Domingos Oliveira de seu apartamento da avenida Barata Ribeiro onde tudo acontecia no início dos anos 1960; Cinema novo, de Eryk Rocha, premiado como melhor documentário em Cannes; e Redemoinho, a estreia no cinema do talentoso diretor de minisséries de TV José Luiz Villamarim.

Vale a pena apostar também no documentário Pitanga, de Beto Brant e Camila Pitanga, a respeito do pai desta, o grande ator negro Antonio Pitanga. E, claro, quem tiver curiosidade poderá conhecer o representante brasileiro na corrida pelo Oscar, o melodrama O pequeno segredo, que pouca gente viu até agora.

Enfim, já dá para começar a se divertir.

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