Split, o título original de Fragmentado, tem várias traduções possíveis, além da adotada pelos distribuidores brasileiros: cindido, despedaçado, dividido, esfacelado… Todas se aplicam ao esplêndido filme de M. Night Shyamalan que está chegando aos nossos cinemas.
É, ao mesmo tempo, um suspense eletrizante e uma engenhosa especulação em torno do tema da identidade pessoal e, principalmente, da relação de mão dupla entre real e imaginário. Seu protagonista, Kevin Crumb (James McAvoy), é um jovem adulto com o chamado transtorno dissociativo de identidade (TDI). Convivem em seu corpo nada menos que 23 personalidades, cada uma delas com características psicológicas, morais e até fisiológicas diferentes. Sua psiquiatra, a doutora Fletcher (Betty Buckley), defende a tese de que a imaginação de um portador de TDI é uma espécie de dom capaz de ampliar suas possibilidades físicas.
Tramas entrelaçadas
A partir dessa ideia central, Shyamalan desenvolve paralelamente, ou entrelaçadamente, duas tramas, dois embates. No mais evidente deles, Kevin sequestra e mantém em cativeiro três garotas adolescentes, que tentam fugir com os meios ao seu alcance. O outro embate se dá no interior do próprio Kevin, entre seus vários alter egos, cada um tentando vir à luz em algum momento, eclipsando os outros.
A própria ambientação de grande parte do filme num labirinto subterrâneo de cômodos desarranjados e escuros espelha de certo modo o mundo interior do protagonista. Tudo o que há de mais abstrato se traduz em imagem e movimento, em jogos de luz e sombra.
Com um domínio admirável dos enquadramentos, dos movimentos de câmera, do ritmo da montagem e da direção de atores, o diretor extrai o máximo dessa situação em que, assim como as vítimas e a psiquiatra de Kevin, nunca sabemos ao certo quem está comandando seu corpo. A tensão é praticamente ininterrupta.
Das garotas sequestradas, aquela que, desde o início, estabelece um canal de comunicação com seu algoz, parecendo prestes a compreendê-lo, é a introvertida Casey (Anya Taylor-Joy), a “esquisitinha” da classe, que sofreu, ela própria, um grande e continuado trauma na infância.
Longe de ser uma mera e sentimental “solidariedade dos humilhados”, esse esboço de vínculo sugere uma idéia mais fecunda, a da anomalia como potência, da “doença” como singularidade. Radicalizando esse raciocínio, a própria arte, com tudo aquilo que implica de inteligência e sensibilidade fora dos padrões, seria uma espécie de esplendorosa aberração – como a pérola que surge de um verme ou de um grão de areia, perturbação imprevista e indesejada no corpo da ostra.
Estranho no ninho
Shyamalan é, ele mesmo, um corpo estranho no cinema industrial americano. Tem uma obra singular, imprevisível, que se insere de maneira meio torta na Hollywood robotizada de nossos dias. Depois de ganhar notoriedade com uma pequena obra-prima, O sexto sentido (1999), ele flertou com os grandes estúdios, alternou êxitos e fracassos, mas sempre de modo muito pessoal e original, e agora está de volta a um esquema de produção mais modesta nos recursos materiais e livre na realização.
Consciente de que não está inventando a roda, mas apenas redesenhando-a a seu modo, o diretor dialoga criticamente com a tradição do cinema americano de gênero. No caso de Fragmentado, conversa, entre outros, com Psicose, de Hitchcock, e Cabo do medo, de Scorsese, para citar dois filmes dominados por vilões cuja patologia os torna inumanos, extra-humanos ou sobre-humanos. E há referências à própria filmografia de Shyamalan, que aliás aparece numa ponta significativa, como o segurança que monitora a vida de um prédio por meio de várias câmeras. O diálogo final, remetendo jocosamente a Corpo fechado (2000), parece uma piscada de olho ao espectador, como se dissesse: no fundo, o que fazemos aqui é um grande jogo, um faz-de-conta sem fim.