Antes de falar do documentário Excelentíssimos, de Douglas Duarte, cabe observar uma curiosa e improvável confluência, na produção cinematográfica brasileira recente, entre dois gêneros aparentemente disparatados: o documentário político e o filme de horror. Eu explico.
A par de um florescente cinema de terror que manuseia as convenções do gênero para abordar as fraturas sociais e raciais do país (As boas maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra; O diabo mora aqui, de Dante Vescio e Rodrigo Gasparini; Animal cordial e Em nome do pai, de Gabriela Almeida; O nó do diabo, de Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé e Gabriel Martins; Mormaço, de Marina Meliande), tem surgido um punhado de documentários que se debruçam sobre o circo de horrores da política brasileira dos últimos anos.
Exemplos dessa vertente horripilante são O processo, de Maria Augusta Ramos, sobre o julgamento do impeachment da presidente Dilma Rousseff no Senado; Bloqueio, de Victória Álvares e Quentin Delaroche, sobre a paralisação dos caminhoneiros; Intervenção, de Rubens Rewald, Tales Ab’Saber e Gustavo Aranda, sobre a proliferação dos discursos de ódio no país; Entre os homens de bem, de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, sobre a atuação parlamentar do deputado Jean Wyllys; e agora Excelentíssimos, centrado na instauração do processo de impeachment e seu avanço na Câmara dos Deputados.
De certo modo, o documentário de Douglas Duarte complementa O processo, não só porque cronologicamente termina onde este começa (a votação do impeachment na Câmara), mas também porque tem acesso privilegiado às ações e articulações dos parlamentares que promoveram e apoiaram a destituição de Dilma, enquanto o filme de Maria Augusta Ramos ficava basicamente restrito aos bastidores da defesa da presidente.
Coração das trevas
Esse acesso ao “lado de lá”, esse mergulho nas entranhas da nossa chamada “classe política”, equivale a uma expedição ao coração das trevas. Em suas duas horas e meia de duração, o documentário registra um pouco de tudo: discursos inflamados e delirantes, troca de agressões verbais e físicas, cultos evangélicos, tapinhas nas costas, cochichos ao pé do ouvido, dancinhas zombeteiras, cidadãos de idade avançada enchendo balõezinhos com a figura de Lula presidiário etc.
Numa visão ingênua e superficial, pareceria que a câmera de Douglas Duarte se limitou a registrar o que encontrou pela frente. As primeiras imagens já induzem a essa sensação: uma câmera na mão extremamente instável procura em meio a um alvoroço de pessoas o seu objeto e o seu foco: a presidente Dilma, saindo a pé do palácio e sendo assediada por jornalistas, fotógrafos, cinegrafistas. A escassa locução em off, que só intervém para contextualizar as imagens com algumas informações jornalísticas, reforçaria a falsa impressão de passividade ou neutralidade diante dos “fatos”.
Claro que não é nada disso. A intervenção do diretor se dá não apenas na escolha e ordenação das cenas, mas também no interior das próprias imagens, em sua relação com a trilha sonora, em seu ritmo. Um exemplo: durante um discurso de Michel Temer há um zoom extremo, em que só vemos parte do rosto e as melífluas mãos do então quase-presidente. Com esse recorte, a fala de Temer – que àquela altura todo mundo viu pela televisão – se tinge de um tom derrisório e autoirônico.
Em outro momento, depois de discursar para apoiadores e ser ovacionado numa sala do Congresso, o então deputado Jair Bolsonaro é filmado de baixo para cima, com a mão no peito e semblante compenetrado, sob os primeiros acordes do hino nacional. Segue-se um longo fade-out, isto é, a tela fica preta por vários segundos. Observação: o filme foi finalizado em abril, quando o ex-capitão ainda era apenas candidato à presidência.
Montagem e confronto
Outras passagens são marcadas por alteração do ritmo (câmera lenta, no mais das vezes), por distorções do som, pela introdução abrupta do silêncio etc. – maneiras não verbais de comentar criticamente o objeto retratado. Tais intervenções, contudo, se dão dentro de certos limites de respeito à integridade do real, evitando a caricatura fácil e a piada vulgar. Em geral a desmoralização é empreendida pelos próprios excelentíssimos retratados (tornando mais evidente a ironia do título escolhido).
Às vezes é a mera montagem que faz os planos colidirem de modo a encenar o confronto político em questão. Por exemplo, durante a votação do impeachment, enquanto um deputado justifica seu voto pela deposição da presidente, vemos a plateia diante de um telão que transmite a sessão e uma moça que xinga o parlamentar de tudo quanto é nome, acusando-o de uma série de crimes. E não terá sido casual que a última imagem do documentário seja de Lula, discursando para uma multidão. O ex-presidente foi preso na mesma época em que o filme estava sendo finalizado.
Apesar da posição clara (contra o impeachment) assumida pela direção, o documentário não pode ser acusado de esconder as inconsistências dos defensores da presidente. No caso mais dramático, um dirigente da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) é mostrado, primeiro, num discurso inflamado de apoio a Dilma, ameaçando invadir propriedades dos parlamentares das bancadas do boi e da bala. Depois, aparece calado e murcho quando confrontado pelos mesmos parlamentares numa CPI. A mudança de cenário altera os discursos e as correlações de força. A corda estoura do lado mais fraco.
Infiltrado na Klan
No terreno da ficção, o lançamento mais importante da semana é, sem dúvida, o divertido e contundente Infiltrado na Klan, de Spike Lee, que comentei quando foi exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Acrescento apenas uma informação que deixei passar então: a de que o ótimo John David Washington, que encarna o policial negro infiltrado na Klu Klux Klan, Ron Stallworth, é filho do grande Denzel Washington, astro de vários filmes do próprio Spike Lee.
A voz do silêncio
Outra estreia interessante é a do longa brasileiro A voz do silêncio, de André Ristum. Narrativa coral, apresentando em paralelo os dramas de vários personagens que eventualmente se cruzam, o filme lembra em sua estrutura obras como Short cuts, de Robert Altman, Magnolia, de Paul Thomas Anderson, e Crash: no limite, de Paul Haggis. Ainda que fique aquém de todas elas (especialmente das duas primeiras), tem o interesse adicional de revelar em suas beiradas algumas feridas da sociedade brasileira atual (desemprego, racismo, machismo, ódio de classe), além de transformar a cidade de São Paulo em personagem.
A acentuar a semelhança com os filmes citados, há um evento natural extraordinário que sintoniza as várias histórias, dotando-as de um fundo cósmico comum: um singular eclipse lunar, que faz as vezes aqui do terremoto de Short cuts e da fantástica chuva de sapos de Magnólia. Com todas as suas possíveis insuficiências, A voz do silêncio faz o básico: apresenta bons personagens em momentos de crise e mostra competência na articulação de seus pequenos e grandes dramas. E o elenco em geral é muito bom.