Quando há mais ou menos dez anos o Vale do Silício começou a oferecer aplicativos de geolocalização, ninguém sabia bem para que serviria aquilo. E, como aconteceu com outras tecnologias, o uso inicial foi pífio. No primeiro momento, alguns poucos usuários registravam a chegada em bares e restaurantes que frequentavam e até a Google chegou a fracassar com o Latitude, uma rede social cujo status era a posição do usuário no globo. Quase uma década mais tarde, 2018 chega ao fim marcado pelo uso de aplicativos de geolocalização cujo melhor exemplo é o Uber. O sistema de transporte, hoje com 20% de capital da Arábia Saudita, virou paradigma para a desregulamentação, ou o que está sendo classificado por diferentes autores de “uberização”.
Minha implicância com os aplicativos de transporte privado vem da percepção de que os veículos aumentaram a quantidade de carros nas ruas, desmontando qualquer possibilidade de política urbana de mobilidade, substituída por uma barafunda de automóveis guiados por pessoas que, por não conhecerem o lugar em que trafegam, seguem o aplicativo de geolocalização sem terem ideia do que estão fazendo. A tecnologia pode ser muito útil, por exemplo, quando é usada para geolocalizar o transporte coletivo e oferecer ao usuário a possibilidade de saber onde está o ônibus em que pretende embarcar, como faz o Moovit e outros apps de transporte coletivo, exemplo que prova de que a tecnologia não é em si boa ou ruim, depende de a serviço de quem está operando.
No caso específico do Uber, a tecnologia está operando a favor da precarização do trabalho. No Brasil, seja pelas altas taxas de desemprego, seja pela possibilidade de complementação de renda – há muitos motoristas de aplicativos que fazem apenas viagens de ida e volta ao local de trabalho –, ou pela simples suposição de oferta de liberdade, maior dos paradoxos da geolocalização. Se até um certo momento a internet oferecia a seu usuário a possibilidade de não estar em lugar nenhum – fazendo da presença virtual quase uma experiência de desmaterialização –, hoje quase tudo na rede funciona exatamente ao contrário, justamente a partir da localização.
Se é verdade que 2018 intensificou a “uberização” da vida, talvez seja verdade também que o ano começou há uma década, mais precisamente em outubro de 2008, momento da crise do mercado financeiro norte-americano, cujos desdobramentos se vê nas insurgência das ruas de Paris ou nos resultados das diferentes eleições que levaram a extrema-direita a ocupar o lugar de “antissistema”, como tão bem analisa o filósofo Marcos Nobre na revista piauí.
A mim interessa pensar a oposição entre sistema e antissistema não a partir do sistema político, como faz Nobre, mas tomando o termo “sistema” com a sua designação mais abrangente e, por isso mesmo, capaz de nos ajudar a pensar mudanças cotidianas sutis que certos “sistemas” nos trouxeram. O Whatsapp, por exemplo, surgiu como forma de burlar as altas tarifas cobradas pelas operadoras por mensagens de texto. Justo por serem caras, eram usadas de forma contida, apenas para pequenos avisos. Hoje, mesmo que cada assinante de telefonia celular tenha direito a trocas de SMS gratuitos, o sistema entrou em completa decadência ou foi dominado pelo mundo do spam.
Aos poucos, e em 2018 mais do que nunca, passamos a mediar afetos e a gerir a vida cotidiana a partir do aplicativo. Era para ser antissistema – operadoras de telefonia e suas tarifas – e em muito pouco tempo virou o grande sistema. A torção faz com que a ideia de ser antissistema seja difundida como forma de impulsionar o sistema e permitir a sua existência. Combinamos geolocalização com uberização – só possível graças ao funcionamento de sistemas muito complexos – e com a estranha difusão da ideia de que a cada adesão a um novo sistema estamos agindo contra um sistema.
No exemplo do Uber nas ruas do Rio, cada motorista está de fato agindo contra uma forma de concessão pública de autonomia para taxistas que se transformou em feudo político para prefeitos e deputados federais. Prevalece a lógica de que vale tudo contra um inimigo poderoso. É no mínimo curioso que hoje, pelo menos no Rio, a melhor forma de se locomover em veículo privado voltou a ser o táxi que, via aplicativo da prefeitura, oferece descontos, não cobra preço dinâmico, dispensa a geolocalização porque conhece o trajeto e ainda pode transitar nas faixas exclusivas. Com alguma sorte, nos próximos anos, vamos poder dizer o mesmo dos partidos de esquerda, a serem reabilitados no gosto popular pelos atuais estragos da uberização da vida.