Clássicos para tudo o que é gosto

Correspondência

11.07.11

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Caro José Geraldo,

Fico até encabulado com os seus elogios a meu livro, em sua carta bonita, leve e solta. Nela você pergunta qual é a minha relação com os clássicos. Não vou dizer que é sempre uma relação fácil, mas os clássicos já me deram momentos de uma incomparável riqueza existencial. Mas confesso que só consegui ler os sete volumes de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, na terceira tentativa. Até então eu parava lá pelo meio do primeiro volume, achando insuportável a narrativa da fixação daquele menino em sua mãe. E só encarei o livro de verdade quando completei cinquenta anos, coincidindo com a morte de minha mãe. Aí pensei: Proust tem algo a me dizer nesse momento tão especial. E avancei na densa floresta espiritual da Recherche para descobrir, maravilhado, que o fim do livro remetia ao princípio do mesmo e, entre estes dois limites, cada detalhe levava Proust no rumo da descoberta do tempo, que a revivência de certos momentos chegava a criar intervalos no tempo que eram mais do que epifanias. Eram iluminações que deixavam o narrador subitamente feliz, parando o tempo, em momentos espirituais que podem ser comparados a insights psicanalíticos ou satoris zen.

Um livro também circular é o Finnegans’ Wake, de James Joyce. Nunca tive a capacidade de lê-lo inteiro, mas os fragmentos traduzidos por Haroldo e Augusto de Campos, além do fascinante ensaio de Morton e Campbell, Introdução a um assunto estranho, me mostraram que, por meio da linguagem, Joyce narrou nada menos que a história entrelaçada da humanidade, nada linear, ao contrário, repleta de simultaneísmos, como um livro cubista. Finn é um dos gigantes da mitologia irlandesa e, ao mesmo tempo, um pedreiro bêbado que cai da escada, e essa queda, no sentido mais amplo possível, é o que move o mundo. O gênio de Joyce passeia de um Olimpo homérico ao botequim.

Estou com medo desta carta, Zé, que carrega o risco de ser professoral. Mas fui provocado por sua abordagem do tema dos clássicos e acrescento às suas definições a de Ezra Pound, em seu ABC da literatura. Clássico é um livro que guarda para sempre a sua juventude. E fico pensando no momento em que um livro deixa de ser apenas um ótimo livro contemporâneo para tornar-se um clássico. E vou arriscar um palpite: 2666, de Roberto Bolaño, que morreu aos 50 anos, em 2003, é um tijolaço que se lê com extremo prazer, mas que continuará a ser lido pelos tempos afora, clássico que será. Já Borges foi desde sempre um clássico, mas é interessante lembrar que em sua História universal da infâmia, há quase um divertissement, “O assassino desinteressado Bill Harrington”, que conta a história do famoso bandido Billy The Kid.

E aqui entro numa questão crucial para a leitura que é o prazer. Confesso que só leio por prazer, mas haverá prazer maior do que a leitura de O vermelho e o negro, de Stendhal, um prazer que ouso dizer poderá ser partilhado por qualquer jovem? Ah, e existem também os clássicos que o são justamente pela magia de alcançar uma beleza inteiramente fora dos padrões. E me vêm à cabeça, imediatamente, Clarice Lispector e Guimarães Rosa.

E o velho Machado, o clássico por excelência, mas que foi entregue à sanha de professores apressadinhos, quando deveria começar a ser lido lá pelos quarenta anos? E vou contar uma curiosidade, Zé Geraldo. Em minhas caminhadas pelas redondezas do prédio onde moro, em Laranjeiras, subo a rua Cosme Velho e passo em frente à casa em que Machado morou durante muitos anos. Atualmente é um restaurante-bar: Assis. Em qualquer lugar do mundo a residência de Machado mereceria tornar-se um museu, mas aqui foi uma videolocadora e agora é um restaurante, com a televisão sempre ligada. Sobre Machado ter morado ali, há somente uma placa na fachada. De todo modo, qualquer dia irei comer lá, quem sabe buscando inspiração.

É hora de, sem sair do tema, mudar aqui, citando o futebol, que tem sido uma constante nessa correspondência entre mim e você, José Geraldo. Não nos esqueçamos que os jogos de futebol entre grandes times são chamados de clássicos. Mas a julgar por certos jogos, tal classificação só deveria ser aplicada quando estivessem em campo jogadores como Didi, Nilton Santos, Pelé, Maradona, Puskas, Di Stefano, Paulo Henrique Ganso e muitos outros. E todo torcedor sabe muito bem apreciar a classe deste ou daquele jogador cheio de talento.

E vou te contar, Zé, uma faceta menos conhecida de minha vida, a de frequentador assíduo, tempos atrás, do Hipódromo da Gávea. Um colega de colégio me convidou a ir às corridas, fui com ele, aconselhou-me a jogar na dupla 13 no primeiro páreo, jogamos, os dois, ganhamos, e pronto. Sorte de principiante e já estava eu capturado pelos cavalinhos. E não demorei a descobrir que havia os chamados páreos clássicos, entre eles o Grande Prêmio Brasil. Nesses páreos corria a nata dos chamados puros-sangues. E quem pensar que uma corrida de cavalos é pura sorte está enganado. Entra também a sorte, claro, o estado físico de um animal, os percalços de um páreo, mas há cavalos que, durante um determinado tempo, se tornam praticamente imbatíveis. Os turfistas, em sua maioria, estão ali pelo jogo e apostam até nos páreos de matungos. Mas quando entram ou entravam na raia uma Tirolesa, um Escorial, um Itajara, uma Emerald Hill – todos pules de 10 – das sociais às gerais todos aplaudiam, muitos chegavam à cerca para ver de perto o craque, como também é chamado no prado.

E havia e há também os jóqueis clássicos, verdadeiros craques na arte de conduzir um animal. E vou falar apenas de um, da minha juventude, o chileno Francisco (Pancho) Yrigoyen, que gostava de ficar lá atrás no início de um páreo, às vezes até mesmo em último lugar, dosando as energias do animal, para só exigir dele no meio da grande curva e depois atropelar na reta final, trazendo sua montaria para a cerca externa, passando um por um, até ganhar com folgas ou mesmo em cima do disco de chegada.

A história de Francisco Yrigoyen é das mais mirabolantes. Gozava de fama não apenas entre os turfistas, mas na sociedade carioca e chegou a entrar na lista dos dez homens mais elegantes do Rio de Janeiro, organizada pelo cronista social Jacinto de Thormes.

O mais estranho é que um homem de tamanha notoriedade pôde sumir sem deixar vestígios. Certamente terá morrido, mas como? Quando eu ia escrever um conto situado no passado, tentei saber mais da vida e destino de Pancho Yrigoyen e não encontrei nem no Google.

A esta altura, você, Zé Geraldo, e outros eventuais leitores, poderão perguntar-se: o Sérgio enlouqueceu? Começa falando de Proust e termina com um jóquei. Pois é, mas tem tudo a ver. Yrigoyen foi um clássico dos clássicos e mereceria uma biografia, como um grande personagem desta cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Abração. Sérgio.

PS. Vou ver se nessa semana visito o seu blog.

 

* Na imagem da home que ilustra este post: a tela Retrato de Marcel Proust (1892), de Jean-Emile Blanche

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