O argentino Relatos selvagens, que entra em cartaz hoje (23 de outubro) nos cinemas do Brasil, é, para além de suas qualidades e defeitos, um verdadeiro fenômeno, e como tal deve ser estudado e discutido.
O longa-metragem de Damián Szifrón, que há uma semana abriu a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, já foi visto em seu país por mais de três milhões de pessoas, um recorde absoluto, que no Brasil corresponderia, proporcionalmente, a quinze milhões de espectadores.
Qual o segredo de tamanho sucesso? Nunca se sabe ao certo, mas algumas pistas são seguras. Dividido em seis histórias autônomas, todas girando em torno de vinganças espetaculares, o filme tem uma inegável competência de produção e direção, uma segurança narrativa notável e, sobretudo, uma sintonia absoluta com seu tempo, isto é, com o nosso tempo. Permeando tudo, um delicioso humor negro.
Referências americanas
Alguns episódios são mais efetivos e originais, outros diluem ideias já um tanto gastas. O primeiro, que mostra com atordoante agilidade um voo em que todos os passageiros parecem ter algo de ruim a dizer sobre um personagem ausente (mas que comanda toda a ação), é o mais inverossímil e talvez o melhor de todos. Seu humor absurdo deixa claro por que os irmãos Pedro e Agustín Almodóvar produziram o filme.
O elenco de Relatos selvagens, com Ricardo Darín à frente
Já a história de dois viajantes que se digladiam na estrada, cada qual com seu carro, faz pensar em O encurralado, de Spielberg, se tivesse sido filmado por Tarantino.
O fato de Relatos selvagens ter como uma de suas referências evidentes o cinema americano ajuda a entender, aliás, a resistência de uma parte da crítica (argentina e brasileira) ao filme. Outra razão é a conhecida má vontade da maioria dos críticos com as comédias de sucesso.
Eis a questão. Do ponto de vista do meio cinematográfico brasileiro, o filme de Szifrón desperta perplexidade e inveja, pois aqui os grandes êxitos populares do gênero, as impropriamente chamadas globochanchadas, são de um primarismo constrangedor, em termos de inteligência e estética. Relatos selvagens nos mostra que é possível conciliar o sucesso com o respeito ao espectador.
Mais que isso: não é uma diversão escapista ou “alienante” (para usar uma palavra em desuso). Num episódio como o do rapaz rico que, dirigindo embriagado, atropela uma pessoa e foge, vemos se configurar, entre quatro paredes, toda uma radiografia das contradições sociais e da estrutura corrupta de poder na Argentina, tão parecida com o Brasil nesse e em outros aspectos. Lembra, aqui, uma daquelas comédias amargas de Ugo Giorgetti.
Narrativa onírica
Já que estamos falando de comédia, um dos filmes mais saborosos da mostra de São Paulo é Au fil d’Ariane, do francês de origem armênia Robert Guédiguian. Como quase sempre, a ação se passa em Marselha e a protagonista é Ariane Ascaride, casada há quatro décadas com Guédiguian.
Desta vez o diretor manda a verossimilhança naturalista às favas desde as primeiras imagens, um travelling pelo interior de uma espécie de maquete virtual de um edifício, antes de situar neste o lar da protagonista Ariane (Ariane Ascaride). A partir daí, seguimos o fio de Ariane (nome tão parecido com a Ariadne do mito do Minotauro), isto é, seu acidentado percurso por uma Marselha meio irreal.
Com a liberdade narrativa do sonho, e suas vertiginosas incongruências, Ariane e Guédiguian nos conduzem por uma paisagem muito próxima do real, mas ligeiramente desfocada (não no sentido estritamente óptico, mas de percepção), povoada por personagens meio esquisitos, e repleta de referências musicais, literárias e cinematográficas (as mais evidentes são a Viver a vida, de Godard, via a canção “Ma môme”, de Jean Ferrat, e a A doce vida, de Fellini).
Nascido e baseado em Marselha, Guédiguian faz um cinema francês que não parece cinema francês. Distante ao mesmo tempo de um certo intelectualismo parisiense da Nouvelle Vague e seus herdeiros e, por outro lado, da superficialidade das comediazinhas de costumes que formam a vertente comercial do “cinema de qualidade francesa”, ele constrói uma obra solar, mediterrânea, que, a despeito de sua irregularidade, é sempre estimulante.
Pasolini vive
Um dos documentários mais interessantes da mostra de São Paulo é Profecia – A África de Pasolini, de Gianni Borgna e Enrico Menduni, que aborda a relação do cineasta e poeta com o continente africano: as filmagens que fez no Marrocos (de O evangelho segundo São Mateus e Édipo rei), os projetos de filmes não realizados e, sobretudo, a ideia da África como um manancial de mitos primitivos sufocados pela uniformização capitalista do mundo.
O forte do documentário são as imagens de arquivo, com bastidores de filmagens, depoimentos e entrevistas de Pasolini e até imagens do cineasta jogando futebol, num impagável confronto entre artistas do cinema e da música contra o time do circo Orfei.
Por uma feliz coincidência, começou ontem (22 de outubro) no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, uma retrospectiva completa da obra de Pasolini, que vai até 16 de novembro.
Dizer que se trata de um programa imperdível é chover no molhado. Pasolini foi um dos criadores mais fortes e originais do cinema moderno e sua obra, espinhosa e sem concessões, parece cada vez mais atual, como observou brilhantemente meu vizinho de blog, Bernardo Carvalho.
A derrota incomparável
Sobrou espaço para falar de um pequeno grande filme, O velho do restelo, curta-metragem de Manoel de Oliveira, exibido na mostra de São Paulo antes das sessões do longa Alentejo, Alentejo, de Sérgio Tréfaut.
Talvez seja o testamento do centenário cineasta português, hoje muito debilitado fisicamente. Se for seu último trabalho, e esperamos que não seja, terá fechado com chave de ouro uma obra admirável. Estão no filme, de maneira irônica e melancólica, as questões mais constantes de seu cinema: a memória coletiva, o destino tortuoso dos povos ibéricos, o caráter ilusório da glória, a impalpabilidade de tudo o que conta de verdade na vida.
Impressiona o vigor criativo, a liberdade estética, a coragem de arriscar desse artista de 105 anos. Num banco de praça do Porto, sua cidade natal, ele põe para conversar ninguém menos que Luís de Camões (Luís Miguel Cintra), Miguel de Cervantes (Ricardo Trêpa), Camilo Castelo Branco (Mário Barroso) e o poeta saudosista Teixeira de Pascoaes (Diogo Dória).
O eixo da conversa é o episódio do “velho do restelo”, que no próprio interior dos Lusíadas faz a crítica da epopeia, destacando o caráter ilusório e vão de todas as guerras e disputas pelo poder (a “glória de mandar”, a “vã cobiça”). No fim, diz o velho, tudo é derrota – e é esse o sentimento que prevalece na conversa, que busca captar o espírito ao mesmo tempo sublime e patético da história ibérica, sobre uma montagem de imagens de filmes do próprio Oliveira (Amor de perdição, ‘Non’ ou A vã glória de mandar) e do Don Kikhot (1957) do russo Grigori Kozintsev.
Se tudo o que parece sólido se esfarela, como diz o filme com outras e melhores palavras, o que resta é a fantasia humana, a loucura da criação, os mundos imaginários. Manoel de Oliveira fez sua parte, com brio e brilho.