Dois cinemas

No cinema

06.05.16

Diz o provérbio espanhol que não se deve pedir peras ao olmo. Traduzindo a ideia para a crítica de cinema, não faz sentido cobrar de um filme aquilo a que ele não se propõe, nem tampouco eleger um tipo único de cinema e avaliar todos os filmes em cotejo com esse parâmetro.

Esse preâmbulo vem a propósito de dois longas brasileiros que estão entrando em cartaz: Ralé, de Helena Ignez, e Prova de coragem, de Roberto Gervitz. São obras diametralmente opostas, frutos de concepções cinematográficas radicalmente distintas – mas não excludentes. São ambos dignos e legítimos. Ambos merecem e devem ser vistos.

Ralé

Comecemos por Ralé. É, em uma palavra, um filme libertário. Libertário na proposta político-existencial – contra a desigualdade e a opressão, em defesa das diferenças – e libertário na forma, com a mistura de gêneros e estilos, a ruptura de convenções, a abertura ao risco.

Não há propriamente um “enredo”, mas uma teia de situações. Num sítio no meio da mata, uma espécie de comunidade alternativa de artistas, ativistas e místicos encena um “teatro rural”, realiza um filme (A exibicionista), canta, dança, faz amor, celebra um casamento gay. Filme dentro do filme, clipes musicais, trechos de Sem essa, aranha Copacabana mon amour (clássicos de Rogério Sganzerla estrelados por Helena Ignez), atores falando para a câmera, locução em off, música narrativa – tem de tudo um tanto nessa colagem, a par de uma celebração do teatro de Górki, Brecht, Artaud.

Há muito do espírito insurgente do cinema “marginal” dos anos 1960 e 70, mas sem qualquer ranço de nostalgia ou apego ao passado. Ao contrário: trata-se aqui de retomar a vitalidade e a radicalidade daquele cinema para encarar as questões de hoje, sobretudo a afirmação de liberdades individuais ameaçadas pela onda retrógrada em curso.

Heterogêneo, desequilibrado, permeável ao risco e ao acaso, Ralé não recua nem diante do escatológico e do “obsceno”. E aqui vai um pequeno spoiler. Quem quiser pode pular o parágrafo. Na cena mais surpreendente, o personagem vivido por Zé Celso caga na calça (desculpem, não conheço meio mais honesto de dizer isso) e é limpo por Barão (Ney Matogrosso) e seu jovem namorado (Roberto Alencar). Poderia ser grotesco, mas é um momento pungente e delicado graças à entrega e ao afeto trocados pelos envolvidos.

Gerações de transgressores

É evidente que os atores escolhidos (Zé Celso, Ney Matogrosso, Mario Bortolotto) trazem consigo toda uma carga de significação: são representantes de várias gerações de uma arte da transgressão. Nesse contexto, a própria Helena Ignez é um manancial de significados. No filme, a atriz encarna Jarda, uma espécie de sacerdotisa da mata, pregando uma ampliação da consciência e uma nova relação entre o homem e a natureza.

Mas ela reaparece como Sonia Silk em trechos de Copacabana mon amour e reencarna a personagem hoje, numa espécie de acerto de contas. E é possível ver um desdobramento de Helena em duas outras figuras opostas e complementares: a doce Nástia (Djin Sganzerla, filha da diretora) e a petulante e despudorada Maya (Simone Spoladore).

Se há uma ressalva a ser feita a Ralé, talvez seja à ênfase excessiva no discurso libertário explícito. Exemplo: a cena do casamento gay, bela e contundente em si, tem uma coda que a enfraquece, com a celebrante (André Guerreiro Lopes, travestido de mulher) dizendo para a câmera: “Pelo direito de ser feliz”.

Algumas das passagens mais efetivas, a meu ver, são as cenas de lirismo urbano quase documental: Nástia sozinha e desprotegida no meio da rua, com o guarda-chuva se desmanchando sob um aguaceiro torrencial; seu namorado (Dan Nakagawa) andando de bicicleta no minhocão de São Paulo; os dois parando numa banca de milho verde.

Igualmente inspirada é a incorporação da música popular na tessitura do filme: Zé Celso cantando ao piano “Três apitos”, de Noel Rosa, Nástia cantando com o taxista “Cintura fina”, de Luiz Gonzaga, que toca no rádio do carro.

“Vivemos um momento de anti-Brasil”, diz Luiz Gonzaga no trecho de Sem essa, aranha que abre Ralé. Em seguida o rei do baião ataca um xote que é uma afirmação de Brasil, de malícia, de alegria de viver. O filme de Helena Ignez é, de certa forma, a tradução audiovisual desse espírito.

Prova de coragem

O filme de Roberto Gervitz, ao contrário, segue uma construção clássica de drama realista. Roteiro bem amarrado, personagens psicologicamente verossímeis, curva dramática eficaz. Aqui não há espaço para o acaso, o improviso, e menos ainda para o erro.

Trata-se de uma adaptação do romance Mãos de cavalo, do escritor gaúcho Daniel Galera. A história se passa em Porto Alegre e na serra gaúcha. Os protagonistas são o médico Hermano (Armando Babaioff) e sua mulher, a artista visual Adriana (Mariana Ximenes). O momento é de impasse na vida do casal: às vésperas de uma exposição decisiva, ela descobre que tem uma gravidez de risco; ele se desestrutura e planeja com um amigo a perigosa escalada de uma montanha na Terra do Fogo.

Em flashbacks, vemos lances da adolescência de Hermano em que se forjou seu caráter, até descobrirmos um fato traumático que ele soterrara desde então.

Tudo gira em torno da esquiva definição de coragem. Na aventura, na profissão, nos relacionamentos, na vida cotidiana, o que significa ter coragem? Dois em cada três diálogos enfocam direta ou indiretamente essa questão. E o título escolhido pelo diretor direciona ainda mais a leitura. O título original do livro, Mãos de cavalo, traz uma ideia de inadequação, de incongruência, de paradoxo. É poético e enigmático. O título do filme é, por assim dizer, didático, avesso à ambiguidade.

E aqui talvez tenhamos a chave para o projeto cinematográfico de Gervitz. Desde seu primeiro documentário, Braços cruzados, máquinas paradas (1979), seu cinema é marcado por uma intenção humanista de esclarecimento. Em Prova de coragem ele chega à plena maturidade artística, ao domínio de seus recursos. O filme é tecnicamente impecável e mostra um artesanato seguro, tanto na decupagem das cenas como na direção de atores. As sequências de escalada e de mountain biking são espetaculares.

Aversão à sombra

O que enfraquece o conjunto e atenua o seu potencial impacto, a meu ver, é justamente o excesso de esclarecimento. Uma certa redundância até. Um exemplo: logo na primeira cena, Hermano participa de uma cirurgia delicada e toma uma decisão corajosa, que salva o paciente da morte. Pouco depois, no carro com a mulher, ele lhe conta o fato e tudo é explicitado: a atitude dele, o sentido daquilo no contexto de seu temperamento e de sua biografia. Talvez o espectador se sentisse mais estimulado se essas coisas se mostrassem pouco a pouco, indiretamente, de preferência sem a necessidade de palavras e explicações.

Apostar na sombra, na ambiguidade, nas arestas e incongruências é algo que parece não caber no filme de Roberto Gervitz, com exceção do bonito final em aberto, que evidentemente não vou entregar aqui.

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