Esboço da artista enquanto musa da Geração Y

Literatura

25.08.13
Sasha Grey em São Paulo, agosto de 2013 (por Renato Parada)

Sasha Grey em São Paulo, agosto de 2013 (por Renato Parada)

Fisicamente, ela é pequena. O corpo miúdo contrasta com os traços fortes do rosto, a cabeça parece um pouco maior do que deveria ser. Nascida Marina Ann Hantzis, ao completar 18 anos abandonou a faculdade na Califórnia, onde estudava cinema após completar o ensino médio um ano mais cedo. Em seguida adentrou a indústria pornô usando o nome Anna Karina, como homenagem à musa de Jean-Luc Godard, mas logo misturou KMFDM, Oscar Wilde e pequenas alterações de grafia para chegar ao pseudônimo sob o qual ganharia notoriedade: Sasha Grey.

Logo no primeiro filme a postura deliberadamente desafiadora e casca-grossa – “a degradação parecia ser incapaz de degradá-la”, como bem definiu Daniel Galera – chegou a intimidar Rocco Siffredi, veterano macho alfa do pornô. Rocco se consagrou nos anos 1990, década de Sylvia Saint e Jenna Jameson, pornstars com personalidade de boneca inflável. Verdade que nessa época também havia Asia Carrera, integrante da Mensa (associação internacional de indivíduos com alto QI). Mas era uma curiosidade biográfica e nada mais: apesar de inteligente e autoproclamada nerd, Carrera não transferia essas características pessoais para seu trabalho na indústria pornográfica.

“Quantas atrizes pornô são existencialistas?”, Sasha Grey perguntou retoricamente numa entrevista feita em algum ponto dos três anos de carreira como atriz (se parece pouco, cabe lembrar que foram 271 filmes). Ela entrou em cena em meio à ascensão no pornô de mulheres fortes e de postura  mais assertiva, como Belladonna, uma influência confessa. Acabou se destacando pela combinação entre performances e persona: as referências intelectualizadas já bastariam para que chamasse a atenção em meio às colegas, mas Sasha tentava encarnar o próprio discurso, transformando suas atuações em intervenções performáticas e construindo aos poucos e em público uma persona artística bem delineada, uma (por mais que isso pareça estranho em se tratando de atrizes pornô) marca autoral. E nesse processo, ao mesmo tempo deixava transparecer uma honestidade quase perturbadora para quem estava prestando atenção.

Com essas características e esse histórico de interesses e inquietações, parece natural que Sasha Grey não tenha ficado satisfeita apenas com a pornografia, que abandonou de vez em 2011,  e passado a atuar em filmes convencionais (estreando em The girlfriend experience, de Steven Soderbergh), além de participar da banda industrial aTelecine, lançar o livro de fotografia neü sex e agora, aos 25 anos, estrear na ficção em prosa com Juliette Society, lançado no Brasil pela Leya com tradução de Bruna Axt Portella.

Juliette Society é narrado por Catherine (uma referência a Belle de jour, de Buñuel), estudante de cinema em crise com o namorado que aos poucos é dominada por fantasias sexuais obsessivas e acaba se envolvendo com um grupo misterioso através da amizade com uma colega menos reprimida sexualmente. “De certo modo, Catherine é quem eu teria me tornado se tivesse tomado decisões diferentes na vida”, diz a autora. É uma personagem interessante, mas seu arco narrativo é previsível e, como o livro inteiro, não chega a empolgar como entretenimento. A desenvoltura na composição das cenas de sexo, notoriamente complicadas para qualquer escritor, é às vezes invejável, e algumas delas funcionam muito bem. Mas o melhor do livro é mesmo Bundy, personagem coadjuvante que é um belo espécime da categoria “canalhas carismáticos” da literatura.

Quando, sentado no chão do quarto do hotel, parabenizo Sasha por essa criação, ela, sentada na cama, abre um sorriso, inclina a cabeça um pouco para o lado e comenta, meio pensativa: “fico muito feliz que você tenha dito isso, sério mesmo”. Como um pouco antes ela havia mencionado planos para uma trilogia, parece que vem mais Bundy por aí – ou talvez tenha precisado negociar com o editor a manutenção no livro de um personagem que à primeira vista pareceria detestável para boa parte dos leitores de um livro feito para vender como água.

O lançamento de Juliette Society em São Paulo foi um sucesso, batendo o recorde de livros autografados na livraria: foram mais de quinhentos exemplares em quase cinco horas. Parte considerável do público estava na faixa dos vinte e bem poucos anos, com uma presença significativa de mulheres jovens e vários casais.  Muitas das mulheres comentaram com Sasha que a têm como role model, um exemplo. “É estranho ser considerada um exemplo”, comenta. “Entrei na indústria pornô para resolver minha própria sexualidade. Mesmo assim, fico feliz que tenha inspirado outras jovens a também encararem de frente a própria sexualidade”.

É um indicativo de um processo de inserção da pornografia no mainstream, como parte indissociável da cultura de massa. A aura do pornô como algo proibido, vergonhoso e sujo, velha conhecida das gerações anteriores, deu lugar a adolescentes usando camisetas com a inscrição “pornstar” sem nenhum constrangimento e à estética pornô se tornando parte do cotidiano. Pornografia audiovisual de todo tipo – pornô convencional, fetiches de toda sorte, vídeos amadores gravados com celular – inundam a internet (aqui um sinônimo para: o mundo).

Hoje nenhum moleque precisa passar pelo constrangimento de alugar um filme pornô numa locadora – quase um rito de passagem da minha geração -, e, o que é ainda mais importante, as meninas têm a mesma oportunidade de acesso fácil e ubíquo (se o rito da locadora já era complicado para jovens do sexo masculino, é fácil imaginar o que representava para as adolescentes da mesma idade). No Tumblr, a verdadeira rede social dessa geração que não vê muito sentido na distinção entre público e privado em nenhuma área da vida (e, de certo modo, nem entre pornografia – como performance realizada para um observador externo – e sexo – como ato íntimo que só diz respeito aos envolvidos), imagens eróticas e pornográficas são onipresentes, e nenhum profissional (ou ex) aparece com mais frequência que Sasha Grey (James Deen, ator pornô ainda em atividade que se tornou uma espécie de galã das adolescentes, é o único a ameaçar seu posto).

E foi nessa sociedade pornificada que a literatura erótica também se tornou um fenômeno de massa, a partir das vendas acachapantes da série 50 tons, de E. L. James. Não que livros eróticos – de romances descartáveis vendidos em bancas a obras com qualidade literária – tenham sido inventados agora: é um gênero tão antigo quanto a própria ficção em prosa. Mas um sucesso nessas dimensões, atingindo uma demografia tão variada, chama a atenção. Por que a palavra escrita, e logo agora? Seria um movimento de busca pela narrativa, pela fantasia sexual com enredo, em meio ao excesso de oferta de imagens em movimento sem nenhuma coesão interna?

“Mais uma vez, é tudo culpa da internet”, diz Sasha Grey. Para ela, isso é parte do mesmo fenômeno que massificou a pornografia e a tornou mais aceitável no mainstream. “As pessoas estão perdendo a vergonha de assumir publicamente sua sexualidade, suas fantasias”. Faz sentido. 50 tons começou na internet, como fanfic (ficção amadora, escrita por fãs) erótica com personagens da série Crepúsculo. E assim como ainda há muito espaço para fantasias sobre um príncipe encantado (apesar de todo o BDSM, esta é a essência de 50 tons), existe mercado para tudo. Inclusive para Juliette Society, que vai na direção oposta.

Comento que, com o livro, agora Sasha ingressou num universo onde ter simpatias existencialistas não é exatamente um diferencial. Com isso em mente, o que então a tornaria única como autora? Ela devolve a única resposta possível: “minhas experiências”. Isso poderia ser dito de qualquer autor, em qualquer gênero, mas é correto: tudo que um autor tem para trabalhar são suas experiências, o diferencial é saber (ou não) o que fazer com isso através da intersecção entre técnica e talento. Pergunto se ela tem planos de escrever algum livro sem nenhuma relação direta com sexo. Na mesma hora percebo que isso soou mal, ainda que não tenha sido minha intenção.

Sasha ergue uma das sobrancelhas e muda de expressão. “Claro, já fiz muitas coisas sem nenhuma carga erótica, muitos roteiros, estou sempre trabalhando nisso”.  Ouvindo isso, lembro do projeto de leituras para crianças em escolas, abortado por conta da reação indignada de pais e professores. Resolvo perguntar sobre algo que me interessa mais diretamente: em 2010, numa entrevista, ela comentou estar envolvida com um “filme black metal”. Quero saber que fim esse projeto levou, e de onde vem o interesse dela pela estética – aqui ela volta a sorrir – e pela ética – aqui, uma risada – do black metal.

Fico sabendo que o projeto ainda está vivo, ainda na fase de roteirização, mas empacado há algum tempo na dificuldade de se lidar com o tema sem resvalar na caricatura ou, pior ainda, na visão irônica. Sasha Grey respeita demais o black metal para isso. O que a fascina: entender a criação, através de uma estética bem demarcada e visualmente fascinante, com grande ênfase na natureza, de um ethos próprio que vai de encontro ao ethos vigente. A criação de um universo através do desenvolvimento de uma linguagem própria, com códigos nem sempre compreensíveis pela sociedade como um todo. O fato de ser um gênero-cultura isolado e resistente à comercialização. “Como o hip hop no início”, ela diz, e é a minha vez de sorrir.

A assessora avisa que o tempo terminou. Esqueci de conversar sobre o conceito de erotismo de Georges Bataille, que sempre me pareceu presente no discurso de Sasha Grey. Não deu tempo de perguntar sobre a provável influência da cosmovisão espermognóstica (talvez via Coil e Throbbing Gristle, nomes importantes – e seminais em mais de uma acepção – da música industrial) no interessante sexto capítulo do livro. Mas antes que eu fosse embora, ainda conversamos um pouco sobre David Tibet, músico/poeta/profeta gnóstico e único membro fixo da banda experimental inglesa Current 93, com quem ela gravou em 2009.

“É ótimo trabalhar com ele, que tem um olho incrível para descobrir novos talentos com algo de único”. Um deles é Antony Hegarty,  ganhador em 2006 do Mercury, prêmio mais importante da indústria musical britânica. “Tivemos conversas intermináveis sobre todos os assuntos”, ela conta. “Ele não aprova as coisas que fiz, mas em momento algum fez eu me sentir um lixo. Era mais como um irmão mais velho preocupado com o meu bem-estar. David é uma pessoa realmente boa, sabe? Alguém genuinamente bom e aberto. Isso é uma coisa tão rara”. E é mesmo.

Durante a estadia no Brasil, Sasha Grey está lendo Gabriele d’Annunzio.

* Daniel Pellizzari é redator do site do IMS.

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