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Caro Sérgio,
Sua carta foi muito elucidativa das relações da sua literatura com o cinema. Vai ficar como documento para pesquisadores, leitores, cinéfilos e curiosos em geral. Essa questão – o trânsito dos livros às telas – é uma das mais antigas e controversas da história do cinema, como você sabe.
Scott Fitzgerald escreveu um romance “definitivo”, ainda que inacabado, em torno desse tema (e de muitos outros), O último magnata, que aliás virou um belo e subestimado filme, o último de Elia Kazan.
No livro A cidade das redes, Otto Friedrich narra saborosamente, entre outras coisas, as relações nem sempre harmônicas de grandes escritores com a Hollywood da era dos estúdios. Brecht, Faulkner, Chandler, Thomas Mann, Hemingway, além do próprio Fitzgerald, todo mundo passou por lá. Desse embate, marcado pelo fascínio e pela repulsa mútuos, saíram faíscas geniais, mas também muitas trapalhadas e algumas tragédias.
Alguns escritores nunca entenderam a natureza do novo meio de expressão e se agastaram com o que julgavam ser uma adulteração de sua arte e um barateamento de suas ideias.
Eu me lembro particularmente do caso de Raymond Chandler, que escreveu a quatro mãos com Billy Wilder o roteiro de Double indemnity (no Brasil, Pacto de sangue), baseado em romance de James L. Cain. Os dois se digladiaram o tempo todo durante os vários meses em que trabalharam juntos. Para começar, Chandler se sentia humilhado em adaptar o texto de um autor que ele considerava menor. Wilder, por sua vez, disse que envelheceu uns cinco anos no trabalho com o escritor. O resultado desse inferno compartilhado, no entanto, é um drama noir dos mais brilhantes que o cinema produziu.
Até hoje há quem diga que só livros ruins rendem filmes bons – e um exemplo muito citado é o dos ótimos filmes de Hitchcock inspirados em obras medíocres de Daphne Du Maurier (Estalagem maldita, Rebecca, Os pássaros). Mas há os contraexemplos incontestáveis: de Morte em Veneza (Mann/Visconti) a Vidas secas (Graciliano/Nelson Pereira), são inúmeros os casos de filmes que dialogaram de igual para igual com as obras-primas que os inspiraram. (Isso para não falar dos livros ruins que geraram filmes igualmente ruins.)
O fato é que não se pode pensar em fidelidade à letra do texto quando se passa da literatura ao cinema. Não há nada mais enfadonho do que filmes que se limitam a “ilustrar com imagens” uma narrativa literária. O cinema acadêmico britânico está cheio de exemplos desse tipo.
Para quem se interessa pelo assunto, recomendo um livro muito bom do crítico José Carlos Avellar, O chão da palavra (Rocco), que apesar do subtítulo restritivo – Cinema e literatura no Brasil – fala também, entre outras coisas, das inúmeras tentativas mais ou menos frustradas de levar Proust às telas.
Outra questão que daria pano para manga é a da mão inversa, ou seja, a da influência do cinema sobre a literatura contemporânea.
Penso que a sua literatura, Sérgio, está na confluência entre essas trocas, no sentido de que ela já tem em si uma vocação, digamos, multimeios, por forçar os limites entre a literatura e o cinema, o teatro, as artes visuais, a música (sem falar de formas narrativas não-ficcionais, como a reportagem, o ensaio, o diário, as memórias). Talvez eu esteja me expressando mal: trata-se antes, no seu caso, de impregnar com essas outras linguagens o texto literário, deixá-lo se alimentar delas.
Por tudo isso, lembro que fiquei animado quando o Jabor (na época meu amigo) me disse que queria filmar Senhorita Simpson. E lamentei muito quando o projeto se desencaminhou.
Mas esta carta está ficando longa e ainda falta te fazer uma pergunta que me foi soprada pelo escritor e jornalista Ronaldo Bressane: e “O gorila”, conto do livro O voo da madrugada? Pelo que entendi da pergunta enigmática do Ronaldo, o conto foi ou será levado ao cinema. É isso mesmo?
Fiquei também com água na boca pensando na possível adaptação do Livro de Praga, que você mencionou na última carta. Só resta torcer para que não caia, como a pobre Miss Simpson, em mãos erradas.
Grande abraço,
Zé Geraldo
* Na imagem da home que ilustra este post: Jack Nicholson e Robert De Niro em O último magnata (1976), de Elia Kazan