A voz de Woody Allen está irreconhecível ao narrar e comentar em off a ação de seu novo filme, Café society. Perdeu o timbre nasalado, a urgência nervosa. Ganhou uma espécie de serenidade madura que condiz, de certa forma, com essa evocação agridoce da trajetória pendular de um rapaz judeu entre Hollywood e Nova York no final dos anos 1930 e início dos 40.
Esse tale of two cities do cineasta octogenário bem pode ser visto como uma suma dos temas mais constantes de seu cinema. Ali está, por exemplo, o triângulo amoroso: uma moça adorável, Vonnie (Kristen Stewart), sinceramente dividida entre dois amores, o maduro agente de estrelas Phil Stern (Steve Carell) e seu sobrinho pobre Bobby (Jesse Eisenberg) que veio de Nova York a Los Angeles em busca de trabalho.
Estão presentes também a tragicômica família judia, os dramas morais, as especulações filosófico-religiosas, a sátira de costumes, a declaração de amor e humor à indústria do cinema, o gosto musical impecável. Enfim, um autêntico Woody Allen.
Estilo depurado
O que há de novo? A rigor, talvez nada. Mas, mais do que suma, talvez uma palavra melhor seja depuração. O cineasta parece ter podado as arestas de ansiedade, a incontinência verbal que às vezes fazia as palavras darem a impressão de não caber na imagem e no ritmo de seus filmes. Aqui tudo flui com uma segurança e uma elegância que alguns grandes artistas encontram em suas obras de maturidade.
Não há desleixo nessa fluência. Allen está engenhoso como nunca na construção narrativa e na busca de soluções visuais e/ou verbais apropriadas. Dois exemplos, já mais para o final do filme. Numa festa de virada do ano, Bobby em Nova York, Vonnie em Los Angeles, ambos são filmados da mesma maneira, com a câmera próxima, e como que destacados dos convivas que se agitam ao seu redor. Têm a cabeça e o coração em outro lugar, habitam outra dimensão. Essa dimensão invisível, que deixa em aberto ao espectador a possibilidade de participar da construção do drama, é atributo dos grandes cineastas.
Em outra passagem, a mesma fala (“Ora, os sonhos são… sonhos”) adquire significados diferentes quando dita por Vonnie a Bobby e por este a sua mulher (Blake Lively), jogando com o duplo sentido da palavra sonho.
A atmosfera visual criada pela fotografia de Vittorio Storaro e a direção de arte de Santo Loquasto, com uma luz e um cromatismo situados em algum ponto entre o onírico e o nostálgico, a trilha sonora envolvente, ligeiramente irônica, os diálogos precisos e saborosos, a escolha certeira dos atores, tudo parece conduzir imperceptivelmente o espectador pelos meandros do universo de Allen, que é feito de personagens dúbios e ideias esquivas, mas que aqui parece atingir uma certa simplicidade, uma forma depurada, despojada de ruídos e dispersões.
Bombom ou sublimação
Há um risco nessa estratégia, ou nessa opção estética. Assassinatos, cadeira elétrica, lares desfeitos, amores traídos, gangsterismo, máquina publicitária hollywoodiana, culto à celebridade, competitividade destrutiva, todas as coisas mais contundentes e sombrias de certa forma perdem o gume, tornam-se suaves, embaladas como bombons na confeitaria de Woody Allen.
Ou não, como diria o outro. Talvez não se trate de diluição, edulcoração ou perda de substância, mas de sublimação ou algo parecido. A consciência, entre serena e melancólica, de que a vida é curta e preciosa demais para aflições desmedidas e de que mais vale buscar a graça oculta até mesmo nos maiores horrores – como a mãe judia que, diante do filho que se converte ao cristianismo às vésperas de ser executado, comenta: “Mais essa agora: além de assassino, católico. Não sei o que é pior”.
Café society não nos faz gargalhar como Um assaltante bem trapalhão, nem nos leva a refletir sisudamente sobre dilemas morais como Crimes e pecados ou Match point. Mas talvez nos sugira os múltiplos sentidos da palavra graça.