É preciso falar de Jean-Luc Godard. A partir da próxima quarta-feira (21 de outubro), até o final de novembro, as unidades do Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, Rio e Brasília – e depois também o CineSesc paulistano – abrigarão a mais completa retrospectiva da obra do diretor.
Não é pouca coisa. Godard é talvez o cineasta mais importante das últimas cinco ou seis décadas. Atenção: eu não disse “o melhor”, que é uma definição perfeitamente sem sentido. O fato é que Godard é imenso, múltiplo, incontornável. Ninguém – crítico, cineasta ou espectador – fica indiferente diante de seu cinema, para o bem ou para o mal. A mostra que chega agora ao Brasil ajudará a entender por quê.
Desde seus curtas do final dos anos 1950, época da eclosão da Nouvelle Vague, o cinema de Godard tem sido uma reflexão implacável e permanente sobre o mundo e sobre o próprio cinema. Um olhar que questiona as imposturas do poder – no sentido amplo, foucaultiano, que se estende a todas as relações humanas – e as imposturas de sua representação no cinema, no jornalismo, na televisão, na publicidade. Mas sobretudo um olhar que questiona a si mesmo, numa volta a mais do parafuso.
Usina de sentidos
Inquieto e erudito, consciente da fortuna literária, pictórica, musical e, evidentemente, cinematográfica do mundo, Godard joga em seus filmes com os signos dessa cultura acumulada e compartilhada. Um exemplo simples e eloquente: ao levar às telas em 1963 o romance O desprezo, de Alberto Moravia, escalou Fritz Lang para o papel do veterano diretor que realiza uma adaptação da Odisseia, e Brigitte Bardot como a volúvel mulher do roteirista. À história narrada ele acrescentava ali toda a carga simbólica que Lang e Bardot traziam em si, seu lugar na história do cinema e da cultura de massas: o signo Lang, o signo Brigitte, tão importantes quanto o entrecho e os diálogos, multiplicando camadas de significação.
Ao longo de sua filmografia, Godard foi aprofundando e radicalizando esse procedimento de sobreposição de elementos para a produção de novos sentidos. O uso da música, dos ruídos, as citações literárias e pictóricas, as brincadeiras metalinguísticas, tudo isso configura uma usina de significados, às vezes apenas sugeridos ou intuídos, mas sempre inesperados, provocadores, desconcertantes.
Uma palavra muito usada quando se fala de Godard é “desconstrução”. De fato, pode-se ver sua obra como uma operação análoga à de um Barthes no desnudamento da linguagem e suas armadilhas. Grosso modo, Tempo de guerra seria uma desconstrução dos filmes de guerra, Alphaville uma desmontagem da ficção científica, A chinesa uma implosão do discurso político revolucionário, Je vous salue Marie uma radiografia do sentimento do sagrado e assim por diante.
Esse, sem dúvida, é um aspecto importante do trabalho do diretor. A corrosão do clichê, a denúncia do lugar-comum. Com frequência esse gesto adquire uma franca comicidade. Numa cena de Salve-se quem puder (1980), um personagem é atropelado por um automóvel e diz, deitado no asfalto: “Acho que não estou morrendo. Minha vida não passou diante dos meus olhos”. À sátira do clichê literário acrescenta-se logo depois a do clichê cinematográfico: ouvimos a música emotiva na trilha sonora e vemos em seguida uma orquestra de cordas tocando na própria rua. A música sempre vem de algum lugar, as emoções são induzidas, o sentimento é uma construção, parece nos dizer Godard, em seu sempre alerta apelo à razão.
Crítica e poesia
É só essa opção radical pelo pensamento crítico, essa rejeição sistemática do compromisso e da mistificação, que justifica sua célebre frase: “O cinema é a verdade 24 quadros por segundo”. Brian DePalma rebateu dizendo que “o cinema é a mentira 24 quadros por segundo” – e o fascinante é que ambos estão certos.
É aqui que Godard se distancia de seu ex-amigo e companheiro de trincheira Truffaut. Enquanto o cinema deste foi se entregando cada vez mais à narrativa clássica e suas delícias, o de Godard foi radicalizando sua recusa e sua denúncia dessa mesma narrativa, aprofundando sua busca de novas formas, de novos curtos-circuitos de sentidos.
Mas esse movimento, digamos, negativo, de renúncia, rechaço e crítica, completa-se com outra dimensão às vezes negligenciada da obra de Godard, que é a poesia, a revelação, a iluminação, em falta de palavra melhor. Do momento sublime em que Nana (Anna Karina) chora no cinema ao ver O martírio de Joana d’Arc, em Viver a vida (1962), à imagem morena de Nadège Beausson-Diagne, límpida e solitária no convés do transatlântico de Filme socialismo (2010), passando pela morte tragicômica do protagonista de Pierrot le fou (1965), as epifanias – fugazes, como toda epifania – proliferam em seus filmes. É como se fosse preciso denunciar toda a feiura do mundo para limpar o olhar e habilitá-lo a ver, por fim, a beleza. “Aprendi com meu filho de dez anos/ que a poesia é a descoberta/ das coisas que eu nunca vi”, escreveu Oswald de Andrade. Poderia, de certa forma, ser o lema de Godard.
Às vésperas de completar 85 anos, o artista segue inquieto, desconcertante e imprevisível. A atual retrospectiva permitirá constatar a coerência e a integridade por trás dessa metamorfose ambulante, dessa revolução permanente. Godard faz parte da rara estirpe de artistas que, em vez de se acomodar com o passar dos anos, radicalizou o discurso e afiou os instrumentos. É, nesse sentido, do time de Pasolini, Glauber, Buñuel, Tarkóvski, Sganzerla e uns poucos outros.