Não deve ser por acaso que os dois principais concorrentes ao Oscar deste ano – A invenção de Hugo Cabret e O artista – são, cada um a seu modo, homenagens nostálgicas à infância do cinema.
Uma cena de Hugo – tão crucial que é repetida duas vezes no filme – talvez ajude a entender o fenômeno. É a reconstituição da célebre sessão de cinema em Paris, em 1895, em que os irmãos Lumière exibiram pela primeira vez A chegada do trem à estação de La Ciotat.
http://www.youtube.com/watch?v=v6i3uccnZhQ
Diante da imagem do trem vindo em direção à sala, os espectadores se assustam: alguns saem correndo, outros se abaixam, muitos gritam. Na plateia de Hugo, mais de um século depois, rimos da ingenuidade daqueles primeiros espectadores com um misto de superioridade, condescendência e… inveja. Nos encantamos com o encantamento deles.
Mesmo desprovido de som e de cor, mesmo em duas dimensões, o filmete dos Lumière produzia naquele público neófito uma forte impressão de realidade. Por quê? Obviamente, porque aqueles espectadores desconheciam até então a nova invenção, não estavam habituados às imagens em movimento produzidas por ela. Parecia-lhes pura mágica.
Imaginação ativa
Mas podemos olhar a questão pelo ângulo oposto. Aqueles observadores supostamente ingênuos possuíam uma notável capacidade de imaginação, que lhes permitia suprir aquilo de que as imagens careciam: cor, profundidade, som. Em outras palavras, eles participavam mais ativamente da construção da realidade fílmica. Olhando assim, aquilo que, inicialmente, nos parecia uma deficiência da parte deles revela-se, ao contrário, uma espécie de superioridade.
Por esse ponto de vista, é possível ler a evolução técnica do cinema como um processo ao mesmo tempo de avanço e de perda. A cada nova conquista tecnológica – a introdução do som, da cor, da terceira dimensão – é como se perdêssemos ou embotássemos, como espectadores, uma faculdade criativa, um elemento de participação ativa na produção do espetáculo. Tornamo-nos mais passivos, em suma. Necessitados de doses cada vez maiores de truques ilusionistas.
É essa ambivalência que anima A invenção de Hugo Cabret e o torna tão potente, tão inquietante e essencial.
Em outra cena tocante do filme, Hugo Cabret (Asa Butterfield) e sua amiga Isabelle (Chloë Grace Moretz) folheiam na biblioteca um livro de história do cinema e mergulham em filmes de Chaplin, Buster Keaton, Griffith, épicos bíblicos etc. Mediante a capacidade de fantasia dos dois garotos, as fotos do livro ganham vida e movimento.
Celebração e lamento
No limiar de uma nova revolução – o cinema digital e em 3D -, somos levados pelo filme de Scorsese a pensar no sentido ambivalente do avanço tecnológico. Por um lado, ao manusear uma tecnologia de ponta, o cineasta exalta o fascínio que ela produz; por outro, indica sutilmente o que há de perda nesse processo. Assim, Hugo é ao mesmo tempo uma celebração e um lamento.
A “passagem do bastão” dos Lumière a Méliès é altamente significativa. Enquanto os criadores do cinematógrafo o consideravam “um invento sem futuro”, uma curiosidade de feira que logo esgotaria seu encanto, o prestidigitador Méliès (Ben Kingsley, no filme) apostava no potencial infinito de fantasia do novo meio. Não por acaso, ele fez experiências com a cor (pintando alguns de seus filmes quadro a quadro) e até com rudimentos de tridimensionalidade.
Assim como o artista e mágico Méliès é necessário para dar pleno sentido à invenção dos cientistas e negociantes Lumière, no filme de Scorsese o afeto é essencial para completar o sentido da técnica. O indivíduo, assim como a cidade e o mundo, é um organismo que só ganha vida com o amor.
O autômato reconstruído pelo pai de Hugo Cabret só pode funcionar com uma chave em forma de coração, cuja detentora não é senão a garota (Isabelle) que abre e preenche o coração do próprio Hugo. Uma fábula singela, mas que reverbera em múltiplos desdobramentos.
O mundo como engrenagem
A ideia da sociedade humana como engrenagem é introduzida logo no início de Hugo, quando a imagem do mecanismo do imenso relógio da estação de trem se funde com a tomada aérea das ruas de Paris, numa deslumbrante sequência de fantasia moderna que faz pensar em Tim Burton.
O relógio, o autômato, os brinquedos da loja de Méliès, os trens, a estação, a cidade – tudo é engrenagem. O próprio Hugo fala a certa altura do receio de ser uma peça descartável na máquina do mundo e da esperança de que sua vida tenha um propósito. Aqui, a cena:
http://www.youtube.com/watch?v=DTo6qwUgHEk
Técnica e imaginação, ciência e afeto, indústria e arte são binômios que se completam em Hugo e no grande cinema em geral. Criador compulsivo e essencialmente otimista, Scorsese lamenta o que se perde ao longo da história, mas enfatiza o que se mantém e se perpetua. Parafraseando Paulinho da Viola, ele não vive no passado; o passado é que vive nele.
Se o seu Méliès declara a certa altura que “os finais felizes só existem no cinema”, o filme ironicamente corrobora a afirmação, terminando sua narrativa num momento de glória, reabilitação e reconhecimento do cineasta pioneiro. Na realidade, Méliès continuou na miséria, jamais voltou a filmar e terminou seus dias num refúgio para artistas. Mas essa é outra história.