Qualquer leitor que algum dia tenha se encantado por Virginia Woolf não deixará de reconhecê-la como uma escritora – na falta de adjetivo menos gasto – intimista. Vale especialmente se a leitura se concentrou na produção da década de 20, quando a autora publicou o quarteto de romances formado por O quarto de Jacob (1922), Mrs. Dalloway (1925), Rumo ao farol (ou Ao farol, em algumas traduções, 1927) e Orlando (1928), sequência que culminaria, em 1929, com seu mais famoso ensaio, Um teto todo seu – e, como se vê, bastaria este último título para levar à impressão (não necessariamente falsa, embora talvez redutora) de um exacerbado intimismo na obra de uma das grandes expoentes da moderna prosa em língua inglesa, suicida aos 59 anos, em 1941.
A esse hipotético leitor que tenha vivido sua intensa “fase Woolf” (como um dia viveu o autor deste texto), e mesmo a quem jamais tenha passado os olhos numa só página da célebre romancista e ensaísta mas saiba reconhecer os delicados sinais da intimidade, não será difícil se encantar igualmente pela pintura da irmã mais velha de Virginia, Vanessa Bell (1879-1961) – pela primeira vez exposta em extensa retrospectiva com cerca de uma centena de obras na Dulwich Picture Gallery, em Londres, até o início de junho.
Vanessa trocou o sobrenome de família – Stephen, como o de Virginia antes de se tornar Woolf – e incorporou Bell ao nome artístico pelo casamento com o crítico Clive Bell, parceiro da vida inteira, ainda que a relação fosse suficientemente aberta para comportar até mesmo uma filha, Angelica, fruto da relação extraconjugal da artista com o pintor Duncan Grant. Vanessa, Clive e Grant, mais o também pintor Roger Fry, o famoso biógrafo da sociedade vitoriana (e da própria rainha Vitória), Lytton Strachey, o marido e editor de Virginia, Leonard Woolf, e o economista John Maynard Keynes, entre outros frequentadores esporádicos, formaram aquele que foi o mais influente círculo de artistas e intelectuais na Inglaterra das primeiras décadas do século passado, o grupo de Bloomsbury.
A referência geográfica – Bloomsbury, bairro de Londres pródigo em praças e jardins, onde os principais membros do grupo foram vizinhos ao longo de décadas – talvez seja um pouco casual, uma vez que tudo começou quando Clive, Leonard, Strachey e o irmão de Vanessa e Virginia, Thoby, eram ainda estudantes em Cambridge (mais tarde, a vizinhança ilustre chegou mesmo a ficar conhecida como “Cambridge londrina”); e tampouco seria despropositado começar a mapear o círculo, e até batizá-lo, por Charleston, a casa de campo no sul da Inglaterra que Vanessa, ali uma anfitriã permanente e generosa, manteve até o fim da vida. É também o cenário – seja a própria casa, seja a paisagem ao redor – sobre o qual a artista representa a intimidade de família e amigos. (Como bônus, a exposição da Dulwich Gallery habilmente contrapõe à pintura de Vanessa um outro tipo de representação do mesmo cenário e seus personagens: fotos dos álbuns de família e, grata surpresa, cliques mais recentes de uma devota do grupo de Bloomsbury que há anos mantém o hábito de visitar – e fotografar – Charleston como faria um peregrino: a cantora e ícone punk Patti Smith.)
Mas, assim como pode ser redutor ler Virginia pela chave do intimismo, ainda mais se a aposta for dobrada pela busca ingênua de “pistas autobiográficas” na obra, há que se ter sensibilidade ao interpretar o tema da intimidade na fascinante arte de Vanessa. O risco é deixar-se hipnotizar pelas não menos fascinantes, e por vezes escandalosas, relações afetivas dentro do grupo e de seus membros com coadjuvantes de fora – o caso emblemático é o da acima mencionada relação entre Vanessa e Duncan Grant, à época também envolvido com o jovem escritor David “Bunny” Garnett, o qual mais tarde se casaria com Angelica: sim, ela mesma, a filha de Grant e Vanessa fora do casamento com Clive Bell (pai de dois outros filhos da artista), fato do qual Angelica só viria a saber quando entrava na vida adulta. A história se complica ainda mais porque o casal Grant/“Bunny” contara desde sempre com a acolhida de Vanessa em Charleston, num tempo em que relacionamentos homossexuais precisavam ser clandestinos na Inglaterra, ao mesmo tempo em que Clive mantinha ele também suas amantes, entre as quais a notável sra. St. John Hutchinson. E Vanessa, como é óbvio, retratou a todos.
Quando pinta a amante do marido – para quem em outra ocasião produziu, sob encomenda mas não exatamente conforme a encomenda, um quadro de forte sugestão erótica (Nude with Poppies, 1916) – e também no retrato que pintou de Garnett, o ex-amante de seu amante Grant, mais tarde também marido de sua filha, Vanessa mostra-se particularmente perceptiva. Em 1915, a sra. St. John Hutchinson, notavelmente bela, glamorosa e culta leitora de Proust, surge na tela como uma figura que só se poderia definir como altiva; no caso do retrato de “Bunny”, do mesmo ano, a delicadeza da expressão do jovem imberbe, torso nu, talvez deliberadamente denote fragilidade naquele que Vanessa dali em diante encararia como rival – e a quem acabaria por vencer na disputa pelo afeto de Grant, embora o rapaz talvez tenha tido a palavra final ao se casar com Angelica (tornando-se genro de Vanessa e do próprio Grant!), união que duraria por quase quarenta anos, até a morte de “Bunny”.
Sintomaticamente, o retrato mais terno e amoroso da coleção exposta em Londres é Interior with the Artist’s Daughter (1935-6): Angelica adolescente, expressão absorta e postura algo desgraciosa, debruçada sobre um livro que aninha ao colo, uma das mãos apoiando a cabeça – o cenário, como de costume, é Charleston, aqui a biblioteca da família na casa de campo. Angelica foi, aliás, senão a principal, uma das modelos favoritas da mãe. Retratada em diferentes idades, aparece não só nos quadros: alguns dos experimentos fotográficos mais curiosos de Vanessa são também registros da filha, como a série em que a caracteriza como a personagem andrógina Orlando, do romance homônimo da irmã, Virginia.
Não é caso único de versatilidade na longa carreira de Vanessa, e a retrospectiva em cartaz dedica toda uma sala à contribuição da artista às artes gráficas (basta dizer que fez a arte de capa de muitas das primeiras edições dos livros de Virginia) e decorativas. Esta última faceta, mais desenvolvida, teve impacto verdadeiramente inovador para a época a partir das Omega Workshops, laboratório mantido por Roger Fry em Londres e ativo durante quase toda a década de 1910. Ali Vanessa criou algumas das tapeçarias e estampas abstratas que viriam a decorar lares nobres da capital inglesa – além das residências dela própria, na cidade e no campo, e de amigos e parentes, em outro exemplo acabado de como sua arte, qual fosse a vertente, terminava perfeitamente integrada à intimidade de Bloomsbury/Charleston.
A experimentação na arte decorativa levou, por sua vez, ao que se poderia classificar como fase abstrata também em quadros do mesmo período, e a ousadia com que Vanessa abre caminho nessa nova vertente rapidamente a coloca na vanguarda da arte abstrata europeia e, sobretudo, inglesa, praticamente intocada pela abstração até ali. Cor e traços geométricos de fundo, elementos essenciais nos retratos, mais o tipo de composição experimentado nessa época (a exemplo da técnica perspectiva que tão brilhantemente cria um sentido de desconexão entre as personagens de The Other Room, quadro de fins da década de 1930, por exemplo), seguiriam tendo impacto significativo na produção posterior da artista. Se rapidamente retornou à abordagem figurativa de seus modelos e temas – deixou também algumas impressionantes naturezas-mortas e paisagens, sobretudo de Charleston e arredores –, Vanessa jamais poderia ser acusada de conservadorismo artístico (que dirá afetivo, como vimos): ainda antes da Primeira Guerra Mundial, novamente incentivada pelo empreendedorismo vanguardista do amigo Roger Fry, como antes nas Omega Workshops, ela coroa o período de formação em que fora ver de perto o que faziam os mestres da vanguarda europeia (Picasso notoriamente entre eles) com participação destacada em duas mostras pós-impressionistas organizadas por Fry nas Grafton Galleries, em 1910 e 1912.
Muito já se escreveu sobre essa influência na trajetória de Vanessa, e talvez a resolução mais acabada da dialética entre o traço deliberadamente “imperfeito”, vanguardista, e o desejo de singelamente retratar pessoas próximas em seu ambiente doméstico – representação aberta de cenas íntimas, com o perdão da insistência nesse mote – apareça, finalmente, quando a retratada é Virginia Woolf, em particular na recorrência com que a irmã surge na tela com o rosto borrado. Biógrafos e especialistas não têm dúvidas sobre certa rivalidade inevitável entre as duas – às vezes expressa em comentários da irmã escritora e mais famosa (“por direito”, lembrava a própria Virginia, uma vez que Vanessa já tivera o privilégio a ela negado da maternidade) quanto à superioridade expressiva da escrita sobre a pintura. Por outro lado, e algo contraditoriamente, Virginia registrou também o incrível talento narrativo de Vanessa num quadro em particular, A Conversation (1913-16), que via como um perfeito conto pictórico, perguntando-se ao mesmo tempo se ela própria, Virginia, seria capaz de contá-lo em prosa.
Se houve, porém, uma causa para a qual as irmãs convergiram sem arestas, e pela qual se notabilizaram, em sintonia com a postura liberal de todo o grupo de Bloomsbury, foi a do então nascente feminismo na Inglaterra de seu tempo. Conforme observa o catálogo da exposição na Dulwich Gallery: “Bell se viu na passagem entre o século XIX, com seus ideais vitorianos de beleza e submissão doméstica, e o mundo moderno que pela imaginação ajudou a criar […]”. Embora seus retratos da ala masculina de Bloomsbury sejam também notáveis (e, além deles, o de Aldous Huxley, de 1935, certamente merece menção honrosa), os curadores apontam, com razão, que o legado de Vanessa “foi ter reimaginado a condição da mulher, com suas poderosas representações de corpos e semblantes femininos abrindo caminho nas telas com uma espécie de força bruta”. Studland Beach (1912) talvez seja o principal desses exemplares da obra a sugerir “um sutil afastamento das normas do feminino, predominando uma atmosfera pesada de isolamento”.
Não se poderia deixar de mencionar, nesse aspecto, a força dos autorretratos de Vanessa, os quais, observam finalmente os curadores da exposição em cartaz, “ao longo da vida [da artista], […] mantiveram certa tônica de desafiante autoconfiança, em constante reafirmação, até o fim, de seu trabalho e de sua identidade como artista”. É um autorretrato o último quadro que o visitante da Dulwich Gallery contemplará: sozinha no ateliê do sótão da casa de Charleston, teto todo seu, a artista aparece ao fundo, seus pincéis apenas um feixe de cores no punho apertado, e o rosto, como em alguns dos retratos de Virginia, obscurecido por um borrão. Pintado já no outono da vida, em 1952, quando Vanessa cruzava o limiar dos 70 anos e se recolhia ainda mais à vida familiar, o quadro encapsula à perfeição as identidades doméstica e artística sobre as quais, nas décadas anteriores, erigiram-se a um só tempo obra e personalidade da artista.
Na carta escrita à nora, Anne, em 1955, e exposta ao lado desse derradeiro autorretrato, o visitante capaz de decifrar a caligrafia difícil não deixará de reparar nessa espécie de frase-síntese de todo um projeto artístico, pessoal e ideológico com que Vanessa recebe a boa-nova de que novamente se tornava avó: “Muito inteligente da parte de vocês gerar uma filha!”, é como saúda a nora e o filho, o também escritor Quentin Bell. Eis aí um micro-manifesto feminista alardeado em plena intimidade – e para o mundo inteiro ouvir.
Aquela neta veio a se chamar Virginia.