Miguel Del Castillo publica até o fim de janeiro, pela Companhia das Letras, sua obra de estreia, Restinga, composta de dez contos e uma novela intitulada “Laguna”. Ex-morador do Rio de Janeiro, Miguel faz da praia e do mar cenários de contos breves, sutis e repletos de silêncio. Eleito pela revista Granta um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros, o autor conversa com o Blog do IMS sobre o seu primeiro livro.
Foto: Carolina Ribeiro (Divulgação)
1) Uma das principais marcas estilísticas de Restinga é a descrição de cenários – não que seja um livro repleto de descrições à moda antiga, mas digamos que há uma atenção especial a isso. Você é formado em arquitetura e edita livros de fotografia na Cosac Naify. Como você acha que essas duas áreas – a arquitetura e a fotografia – ajudaram a moldar o seu estilo?
Acho que minha imaginação é muito visual, sim, e a formação que escolhi e meu trabalho atual só reforçam isso, o que acaba se refletindo na maneira como penso e, por conseguinte, escrevo. Na faculdade, sempre achei curiosa a escrita dos chamados “memoriais” dos projetos: o que era para ser um texto breve e sintético acabava se tornando geralmente algo burocrático, com palavras repetidas por todos (“espaços amplos”, por exemplo); a própria crítica de arquitetura é conhecida por ter poucos autores que de fato escrevem bem. Meu trabalho de conclusão de curso foi teórico, uma tentativa amadora de aproximar literatura e arquitetura de modo a influenciar a escrita arquitetônica, textualmente, e buscar uma narrativa diferente sobre os projetos. A relação com a fotografia veio mais recentemente, por conta de um espaço que surgiu na editora, embora sempre tivesse sido algo que me chamava atenção. Então acho que esse viés visual vai sempre estar presente naquilo que eu vier a escrever, porque é assim que a minha cabeça funciona.
Com relação ao Restinga, mais que os cenários em si, minha vontade era que de cada conto emergisse uma imagem. Essa imagem às vezes é uma paisagem natural e pode ter implicações mais, digamos, simbólicas, como a própria restinga do título – um discreto braço de terra que avança no mar, algo que parece frágil, mas ao mesmo tempo é forte –, ou como a laguna da novela no fim, que oscila, enchendo e esvaziando. Mas pode ser apenas uma imagem, como as ideias de colônia (agrupamento) e arraial (ocupação temporária), que são títulos de outros contos, ou mesmo um lugar em volta do qual os eventos acontecem, como o lago Paranoá de outro texto.
O geógrafo francês Jean-Marc Besse diz que a paisagem “é da ordem da imagem, seja esta imagem mental, verbal, inscrita sobre uma tela ou realizada sobre o território”. Concordo com ele, e acho interessante isso de você olhar para uma paisagem dessas e ela te remeter a coisas que não estão ali, que talvez estejam apenas na memória.
2) A praia e o mar são ambientes recorrentes nos contos, a tal ponto que se pode dizer que é o elemento unificador. Qual a sua relação com esses locais?
Desde que vim morar em São Paulo, todo mundo sempre me pergunta, para puxar assunto, se sinto falta da praia. Digo que sim, mas se meus amigos do Rio me ouvissem falando isso talvez dessem risada – sempre fui o mais branquelo dos cariocas. Ocorre que não sinto saudade de ir à praia. O que me faz falta é ter o mar ali por perto, ao alcance, à disposição; de vê-lo como fim de linha, marcando onde a cidade termina.
Morei até os oito anos num condomínio horizontal de apartamentos geminados que se debruça sobre a praia da Joatinga, no Rio. A gente dormia com o barulho do mar. Depois minha mãe se mudou para a Barra da Tijuca, bairro também na costa. No Rio, se você vive ou trabalha em algum lugar mais ou menos perto do mar, acaba planejando sua vida em função dele: desde pensar que vai precisar trocar os eletrodomésticos com mais frequência até tomar decisões de locomoção – escolher ir pela avenida Niemeyer vendo o mar (um caminho mais longo) ou pelo túnel Dois Irmãos, por exemplo, ou se vai sair mais cedo de casa pois seu compromisso é bem no horário de saída de praia (quando o trânsito piora).
No livro, acontece algo parecido: é como se os contos se organizassem em torno da água do mar. A praia está lá, às vezes só no biquíni de uma ex-namorada de um personagem, mas sempre aparece de algum jeito. Quando escrevi os primeiros contos, foi um pouco sem querer deixar o mar sempre presente, mas depois acabou se tornando uma opção, chegando a ser, como você disse, um fio condutor forte entre os contos. Não à toa acabei escolhendo como uma das epígrafes um trecho de A vida descalço, do Alan Pauls, que é o ensaio mais genial sobre estar na praia que eu já li. Ele diz que todos que vamos à praia procuramos nela uma espécie de tabula rasa, como cenário tanto do que “o mundo era antes que a mão do homem decidisse reescrevê-lo” quanto do que ele poderia ser após um apocalipse. Talvez por isso a praia se preste tanto à ficção, e seja tão fotografada.
3) Em Restinga, predomina o conto breve. Há vários textos com menos de 10 páginas. Por que a escolha pela concisão?
Não sei se foi uma escolha muito consciente. Com a maioria desses contos, aconteceu de eu achar que já estava bom, que mais personagens ou mais acontecimentos atrapalhariam algo importante que estava surgindo ali, daquele jeito. Reescrevi muito, mudei frases e eventos de lugar, mas foram poucas as vezes que aumentei substancialmente algum conto depois de escrito. Já me perguntaram também se eu pretendo seguir sendo contista. Não sei responder, realmente, tenho uma ideia para um próximo livro que acho que ficaria bem como romance, mas também gosto muito do gênero do conto. Diria que, nessa primeira incursão, o conto foi também uma maneira de poder experimentar diferentes tipos de narrativa, e essa possibilidade foi muito importante.
4) Dos vinte autores selecionados pela revista Granta, você era um dos poucos que nunca havia publicado um livro. A sua estreia já chega, portanto, com um certo grau elevado de expectativa. Você está receoso de que a crítica levará muito em conta a sua inclusão na lista?
Imagino que todo escritor que publica um livro fica ansioso com a crítica, e eu estou, é claro. Mas não diria que estou receoso especificamente por ter feito parte da seleção da Granta. Todo mundo que tem alguma clareza sabe da grande importância da revista, mas também entende que aquela é uma seleção entre outras, um recorte feito por algumas (muito qualificadas) pessoas. A Granta possibilitou diversas coisas para mim, sem dúvida; a principal, além da visibilidade, foi começar a de fato levar a sério a ideia de escrever um livro. Foi depois da publicação da Granta em inglês que comecei a escrever os outros contos, procurando fios condutores nos seguintes, pensando a sequência, a montagem.