Não sou leitor de Edmund White. Não li seu romance mais recente, Our Young Man (Bloomsbury), que acaba de sair em inglês, mas fiquei de cabelo em pé ao ler a resenha que a escritora Diane Johnson publicou sobre o livro na edição de maio da The New York Review of Books. É uma crítica em geral positiva e simpática, mas que diz o seguinte: “Um leitor que não seja gay, ao ler romances sobre comportamentos homossexuais, não pode deixar de levar em consideração que os gays estiveram condenados por muito tempo a ler a maior parte da literatura com uma apreciação cooperativa embora intelectual (por oposição a uma apreciação instintiva) das cenas de sexo. Coisas que não correspondem à sua categoria não se traduzem com o mesmo entendimento visceral, são apenas informação: Ah, então é assim que eles fazem?”.
Desde seu primeiro romance, o alegórico Forgetting Elena (1973), incensado por Vladimir Nabokov, Edmund White foi tornando a homossexualidade cada vez mais central e explícita em sua obra. Nascido em 1940, sobrevivente e testemunha da crise da aids e de suas consequências dentro da comunidade homossexual, White terminou por assumir sem constrangimento a militância e o papel de escritor gay. Além de livros de ficção, escreveu textos autobiográficos, uma biografia de Jean Genet e o manual The Joy of Gay Sex, este em coautoria. Viveu anos na França e é profundo conhecedor da literatura e da cultura francesa. O protagonista de Our Young Man é um modelo francês, em Nova York, durante os piores anos da AIDS.
A consideração paternalista expressa na resenha de Diane Johnson (sobre o que os leitores gays devem ter passado até poderem afinal ler uma literatura com a qual se identificassem visceralmente no que se refere às cenas de sexo) parece em princípio resultado de uma percepção solidária do outro, mas é fruto do pior preconceito. Menos contra os gays do que contra a literatura.
É uma reação que se serve do germe plantado pelo multiculturalismo (a ideia de que a cultura é expressão de identidades raciais, de gênero etc.) e que se aproveita das fragilidades e dos equívocos potenciais dessa ideia para defender o inverso: uma literatura entre e para iguais.
Segundo a resenhista, o leitor só pode apreender visceralmente o que o espelha. Do contrário, o que lhe resta é uma leitura incompleta, “intelectual”. Há aí dois preconceitos óbvios e complementares: 1) que não pode haver relação visceral com o que é diferente; e 2) que literatura não é pensamento.
É o mesmo lugar-comum (de que cultura não é pensamento nem diferença, mas identificação) que sustenta o argumento de quem, transferindo as leis de mercado para o âmbito das ideias, acha que financiar obras que estão para além do seu entendimento é jogar dinheiro fora.
O multiculturalismo criou uma armadilha para si ao defender uma estratégia em princípio libertária, rompendo o valor subjetivo do cânone ocidental para abrir a literatura à expressão das minorias e à afirmação das diferenças. No momento em que abandona o valor arbitrário e subjetivo para buscar um critério mais democrático e objetivo, baseado na expressão da experiência e da identidade do autor, a literatura abre o flanco para o tipo de redução e inversão que a resenhista reproduz ao analisar o livro de White: romance de gay é para gays. É um retrocesso.
Ela não chega a dizer que as cenas de sexo homossexual lhe causam repulsa (porque aí entraria em contradição, seria confessar uma forma de leitura visceral com a diferença). Diz apenas que as cenas de sexo homossexual a deixam indiferente ou, melhor, como cabe dizer num ambiente politicamente correto, provocam nela “uma apreciação cooperativa mas intelectual” sobre o que leu. O preconceito é amenizado pela solidariedade e pela empatia com leitores gays que durante tanto tempo tiveram de se contentar com uma indiferença análoga (antes de poderem ler e se identificar com as cenas de sexo abertamente gays).
A perversão do raciocínio é sutil. A principal vítima, como já foi dito, não são os gays; é a literatura, reduzida à identificação não intelectual. A “naturalidade” e a “visceralidade” sempre foram valores associados à universalidade de um texto, contra a estranheza, a singularidade, o hermetismo, a experimentação ou a “cerebralidade”. O que agora parece expressar a lógica pós-multiculturalista dessa resenha é uma segmentação de visceralidades por categorias de leitores. Um texto visceral, segundo a resenhista, já não o é universalmente, mas atende a um determinado segmento de mercado. É um contrassenso, mas é também um desdobramento natural do preconceito de quem acredita e argumenta que cultura e pensamento são coisas contraditórias.