Não vamos falar, ao menos por enquanto, dos famigerados “filmes do Oscar”, que inundam as telas e a mídia todo início de ano. Tem tempo para isso. Hoje é dia de falar da Mostra de Cinema de Tiradentes, a pleno vapor em sua vigésima edição. Entre os festivais brasileiros, é o que aposta mais radicalmente no cinema autoral, de invenção, de experiência, ou seja lá como se queira chamar esse punhado de filmes estranhos ao mercado e avessos às classificações. De certo modo, é o anti-Oscar.
Predominam aqui os jovens realizadores, mas há destaque também para os veteranos que não se curvaram às convenções e conveniências (estéticas, políticas, mercadológicas). Uma das homenageadas deste ano foi a atriz e cineasta Helena Ignez, e um dos filmes mais aguardados é Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho, que comparece também com um novo curta, Gozo/gozar.
Mas vamos aos novos. Dos sete longas-metragens concorrentes da mostra Aurora, vi quatro. Dois ainda serão exibidos hoje (sexta-feira, 27 de janeiro) e perdi a sessão de Baronesa, de Juliana Antunes, muito bem recebido pelo público e pela crítica.
Cinema em esboço
Os quatro vistos são um bom retrato do que costuma ser a produção que trafega por Tiradentes: estimulantes, inventivos, íntegros, mas também um tanto falhos, por vezes claudicantes, como projetos que não se cumpriram totalmente. Em conjunto, passam a ideia de um cinema em esboço, em formação, em busca de um caminho mais firme.
O mais bem-sucedido dos quatro, isto é, aquele que parece levar a cabo mais inteiramente sua proposta, é Sem raiz, de Renan Rovida. Produzido pela Tela Suja, que se apresenta como um “coletivo anticapitalista”, o filme retrata o cotidiano, os sonhos e frustrações de quatro trabalhadoras da Grande São Paulo: uma desempregada que vende flores no semáforo, uma operadora de telemarketing que sonha em construir uma creche, uma corretora imobiliária que quer morar no campo e uma professora universitária vinda da Argentina.
Com uma mise-en-scène ao mesmo tempo precisa e aberta ao improviso e ao acaso, feita predominantemente de planos fixos mais ou menos longos, a narrativa observa suas personagens a uma espécie de meia-distância, permitindo que entrem em quadro os ruídos e “sujeiras” da metrópole. Por meio dessas histórias pessoais, delineia-se claramente o movimento sufocante, anônimo e onipresente do capital, a tornar precárias as relações e restringir os espaços para o desejo e o sonho. Um belo longa de estreia do diretor e, salvo engano, também de seu coletivo.
Pornochanchada revisitada
Outro longa igualmente animador, mas por motivos diferentes, é o documentário Histórias que nosso cinema (não) contava, da também estreante Fernanda Pessoa. É um filme de montagem, supostamente só com cenas de pornochanchadas dos anos 1970, nas quais a diretora pinçou referências à realidade do período de auge e início do declínio da ditadura militar. Digo “supostamente” porque a compilação inclui trechos de longas de Antônio Calmon, como Nos embalos de Ipanema (1978) e Terror e êxtase (1979), que dificilmente poderiam ser enquadrados no gênero.
Feita a ressalva, é impressionante como o documentário revela o que, naquela filmografia tão subvalorizada, estava diante dos nossos olhos e no entanto não víamos, pelo menos não com a devida atenção: referências não apenas ao arbítrio militar, mas às contradições sociais, à segregação racial, às questões de gênero, às mudanças de costumes e às reações a elas, à avassaladora presença da televisão e da publicidade, ao avanço da sociedade de consumo.
Interessante mesmo seria observar a recepção de Histórias que nosso cinema (não) contava por diferentes plateias, em termos de faixa etária (quem viveu e quem não viveu aquela época) e de extração social. Uma coisa é certa: o público popular que lotava os cinemas para ver aquelas pornochanchadas não existe mais. Nas últimas décadas houve uma elitização do circuito exibidor, e a demanda popular por ficção e entretenimento passou a ser suprida hegemonicamente pela TV.
Autorreferência e metalinguagem
O próprio cinema é também, desde o título, o tema central de Um filme de cinema, de Thiago B. Mendonça, vencedor do Aurora do ano passado com Jovens infelizes. Desta vez, trata-se de uma curiosa ficção “familiar” estrelada pelas duas filhas do diretor, em especial Bebel, de uns oito anos, que deseja fazer um filme para a escola e pede emprestada a câmera do pai (Rodrigo Scarpelli), um cineasta em crise criativa.
Essa história singela, que espelha parcialmente a própria situação familiar do diretor, acaba assumindo um tom de fábula infantil que homenageia o “primeiro cinema” (de Lumière e Méliès a Chaplin e Buster Keaton) como um território de descoberta, invenção e poesia análogo à infância. A articulação de cenas dos filmes mudos com a narrativa familiar nem sempre funciona bem, e a encenação parece por vezes um tanto frouxa, mas o resultado final é mais que simpático e deixa a sensação de que tudo o que veio depois já estava inscrito, ao menos em potência, naquele cinema dos pioneiros.
Por fim, Subybaya, de Leo Pyrata, é uma comédia metalinguística centrada na construção de uma personagem feminina no Brasil de hoje e nas questões de gênero que isso suscita. O desenvolvimento da narrativa, que acompanha o dia a dia de uma jovem insatisfeita de classe média de Belo Horizonte, é pontuado por críticas de um grupo de implacáveis espectadoras feministas. A piada se completa com a atuação do próprio diretor como um personagem de macho cafajeste. O tom é um tanto juvenil, com uma autocrítica que acaba funcionando como autodefesa, mas não deixa de ser divertido.
Dito tudo isso, o grande mérito da Mostra de Tiradentes dos últimos anos – revelar e fomentar uma produção inquieta, à margem do mercado – traz também um risco e um desafio. O risco é de que esse oásis de liberdade criativa se torne uma bolha, uma redoma, em que os realizadores dialoguem somente com seus pares e com o público cinéfilo local, que se habituou à “estranheza” de seus filmes. O desafio é não deixar que isso aconteça, é ajudar essa produção a ganhar visibilidade e encontrar suas plateias. Quem disse que é fácil?