A última estreia importante do ano que está terminando – sem falar nos blockbusters de férias – é sem dúvida Belos sonhos, de Marco Bellocchio, sobre o qual escrevi aqui quando foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo. Mas hoje é preciso falar de Andrea Tonacci (1944-2016), o imenso cineasta que acaba de nos deixar.
Num ano de graves perdas para o cinema brasileiro, esta foi uma das mais cruéis, pois Tonacci vivia uma fase de grande energia e criatividade, com vários projetos em mente ou em andamento. Muito querido por seus amigos, colegas e colaboradores (melhor seria dizer que todos os seus colegas e colaboradores tornavam-se instantaneamente seus amigos), o cineasta viu crescer nas últimas décadas uma legião de jovens admiradores, estimulados por seu trabalho, suas ideias e seu afeto.
Ética e estética
Ao longo de meio século, Tonacci filmou muito e mostrou relativamente pouco: apenas cinco longas-metragens, um único deles de ficção, o hoje legendário Bang bang (1971), marco intrigante do cinema de invenção, impropriamente chamado de “marginal”. Essa parcimônia tem a ver com uma característica central do cineasta, o profundo senso de responsabilidade diante das imagens que captava e exibia. A estética, para ele, nunca esteve separada da ética. Poderiam ser dele os versos de John Keats: “Beauty is truth, truth beauty – that is all/ ye know on earth, and all ye need to know” (“A beleza é verdade; a verdade, beleza – isso é tudo/ o que se sabe na terra, e tudo o que é preciso saber”.)
Da inquietação diante do absurdo de um país em transe autoritário, manifestada nos primeiros filmes (os curtas Olho por olho e Blá-blá-blá, o longa Bang bang), o diretor evoluiu nas décadas seguintes para uma preocupação ao mesmo tempo visceral e cósmica com a condição e o destino dos povos indígenas, que era sua maneira de meditar sobre a humanidade em geral.
Forjado na interlocução com povos como os timbiras (Conversas no Maranhão, 1977-83),os canelas (Discursos canelas, 1979) e os araras (Os araras, 1980), esse pensamento vivo desembocou num filme extraordinário, Serras da desordem (2006), híbrido singular de documentário, ficção e autorreflexão.
Para reconstituir – e ao mesmo tempo repensar – a saga do índio Carapiru, que depois de escapar ao massacre de sua aldeia atravessou a pé vários estados e viveu numa fazenda de brancos sem falar uma palavra de português, Tonacci misturou material de arquivo com passagens reencenadas pelos próprios protagonistas da história (Carapiru, a família que o acolheu, o sertanista Sidney Possuelo etc.). O resultado é um filme único, uma das mais pungentes obras cinematográficas não só sobre a tragédia indígena, mas sobre a condição humana em geral.
O Carapiru revelado por Tonacci é um homem que não se encaixa na sociedade dos brancos e não consegue mais voltar à sua condição tribal. É um pouco como o personagem Joe Christmas, de Luz em agosto de William Faulkner, negro no mundo dos brancos, branco no mundo dos negros. Carapiru é um parafuso solto que, na sua deriva, expõe a engrenagem cruel do mundo.
Cinema em construção
Serras da desordem não se contenta com o mero registro dessa aventura, mas discute a todo momento seu sentido – e as questões morais envolvidas na sua transmutação em cinema. Ao repelir toda e qualquer idealização ou mistificação apaziguadora, bem como toda e qualquer estetização aprazível, o filme intensifica o desconforto do espectador branco diante dessa “outra humanidade” que o espelha, questiona e interroga. Ao final, não perguntamos simplesmente “quem é Carapiru”, mas sim “quem somos nós”. E não é esse o papel da grande arte?
A melhor maneira de honrar um cineasta e fazer reverberar a sua obra é ver e difundir seus filmes. O ideal seria vê-los todos na tela grande, mas na falta dessa possibilidade a internet quebra um grande galho. Serras da desordem está disponível na íntegra no Youtube:
Outra preciosidade acessível na rede é o curta Blá-blá-blá, protagonizado por um inspirado Paulo Gracindo:
Para quem não viu ou quer rever, há o genial Bang bang, que ainda provoca desconcerto quase meio século depois de realizado:
Para concluir, o próprio Tonacci fala sobre seu último trabalho pronto, o insólito média-metragem Já visto, jamais visto (2014), uma reflexão sobre sua própria trajetória cinematográfica e pessoal, feita com restos de filmes e projetos inacabados. Testemunho de uma vida que terminou quando ainda estava em construção, como quase todas: