A cineasta e pesquisadora Fernanda Pessoa

Laura Morsch/Divulgação

A cineasta e pesquisadora Fernanda Pessoa

Uma magia modesta

No cinema

24.08.18

Contra vento e maré, quatro novos filmes – dois de ficção e dois documentários – comprovam a vitalidade e a pluralidade do cinema brasileiro atual. São eles Benzinho, Café com canela, Histórias que nosso cinema (não) contava e A destruição de Bernardet. De quebra, chega às livrarias a Nova história do cinema brasileiro, obra fundamental com mais de mil páginas divididas em dois volumes, sob organização de Sheila Schvarzman e Fernão Ramos.

Comecemos por Benzinho, segundo longa-metragem de ficção do carioca Gustavo Pizzi, em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio. Pode ser definido, grosso modo, como a crônica agridoce de uma família de classe média. Mas esse resumo esconde o essencial: a originalidade do olhar e a delicadeza do toque do diretor. A começar pela ambientação inusual: a ação se alterna entre a periferia de Petrópolis e Araruama, na região dos lagos fluminense, onde a família tem uma modesta casa de praia.

 

 

Outro acerto é o recorte temporal, concentrando-se no momento em que o cotidiano familiar é conturbado pela iminente partida do filho mais velho, o adolescente Fernando (Konstantinos Sarris), para jogar handebol na Alemanha.

A súbita novidade coincide com o agravamento das agruras financeiras dos pais de Fernando, Irene (Karine Teles) e Klaus (Otávio Müller). Com uma pequena papelaria deficitária, Klaus planeja vender a casinha de praia para abrir um novo negócio e terminar a construção de uma nova casa para a família (casal e quatro filhos). Irene tenta completar o orçamento vendendo roupas e “quentinhas” numa Kombi, junto com a irmã, Sônia (Adriana Esteves). Para agravar as coisas, Sônia fugiu do marido violento (César Troncoso) e está morando provisoriamente com o filho pequeno na casa da irmã. Com isso, são três adultos, um adolescente e quatro crianças sob o mesmo teto, quase como num filme de Mario Monicelli ou Pietro Germi.

 

Esperança e sensatez

Se a construção dramática se equilibra entre a esperança sonhadora de Klaus e a sensatez pé-no-chão de Irene, as opções de mise-en-scène vão na mesma direção. Por um lado, há o que desmorona: a casa da família, em que uma porta emperrada obriga todos a entrar e sair por uma janela, a Kombi sacolejante e enferrujada, o casamento de Sônia, o quiosque de Klaus. Ao mesmo tempo, há o que está nascendo ou florescendo: a casa em construção, a carreira esportiva internacional de Fernando, a infância dos filhos menores. Tudo está em processo; deterioração e renovação acontecem ao mesmo tempo.

Essa sensação de simultaneidade, de vida que flui sem parar, é talvez a conquista maior de Benzinho. Diferentemente do que ocorre em tantos filmes brasileiros, em que as coisas todas parecem parar para que os personagens recitem suas falas, aqui a engrenagem da vida segue seu fluxo, os eventos se atropelam e sobrepõem: ao mesmo tempo em que Fernando comunica à família a importante notícia de sua partida para a Alemanha, uma torneira começa a vazar, os irmãos pequenos brigam por um biscoito, a mãe grita tentando pôr ordem no caos.

Em meio à descrição enxuta, elíptica e realista das ações cotidianas, inserem-se breves e belas imagens com sentido mais poético do que propriamente narrativo: mãe e filho adolescente abraçados numa boia no mar, vistos do alto; mãe e filhos pequenos numa “cabaninha” de lençóis, sob uma contraluz dourada que sugere o útero. A poesia brota do prosaico. Uma magia modesta, como diz o título de um livro de Bioy Casares.

A referência a Germi e Monicelli, alguns parágrafos acima, não foi fortuita. Como esses mestres italianos, Gustavo Pizzi trafega na fronteira sutil entre drama e comédia lançando um olhar ao mesmo tempo amoroso e divertido aos personagens, revelando sua grandeza e sua fragilidade ao surpreendê-los, por assim dizer, no contrapé. Ao contrário do mundo binário das telenovelas, aqui não há mocinhos e vilões, mas seres humanos desajeitados, contraditórios. O sublime e o ridículo andam lado a lado.

 

Café com canela

Também Café com canela, longa-metragem de estreia da dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa, busca a poesia das vidas anônimas, a grandeza de personagens “pequenos”, mas por meios dramáticos e estéticos bastante diferentes. Ambientado em Cachoeira, no Recôncavo Baiano, o filme conquistou o prêmio do público no festival de Brasília do ano passado.

 

 

É, em resumo, a história da amizade entre duas mulheres: Margarida (Valdinéia Soriano, melhor atriz em Brasília), que entra em depressão e isolamento depois da morte de seu filho pequeno, e Violeta (Aline Brunne), sua ex-aluna, que a reencontra depois de anos e a traz de volta à vida.

O filme tem sido saudado sobretudo por trazer um enfoque renovado sobre personagens negros, longe dos estereótipos de violência e malandragem repisados pela televisão e pelo cinema ruim. Mas uma de suas fragilidades, a meu ver, é justamente aderir a uma dramaturgia muito próxima das telenovelas.

Em sua construção heterogênea, que alterna tempos narrativos e mistura vários formatos de captação e dimensões de “janela”, a força dos personagens e o frescor da abordagem compensam as limitações de produção e prevalecem sobre a afoiteza de experimentar por experimentar, além de uma certa autocomplacência em colocar tudo na tela – problemas típicos de um filme de estreia. Por essas e outras, aguarda-se com curiosidade o segundo longa da dupla de realizadores, Ilha, que compete no próximo festival de Brasília, em setembro.

 

Histórias que nosso cinema (não) contava

A jovem pesquisadora e cineasta Fernanda Pessoa mergulhou no cinema popular produzido nas décadas de 1970 e 80, impropriamente chamado de “pornochanchada”, e descobriu ali um tesouro insuspeitado: registros e comentários críticos sobre inúmeras questões candentes da realidade da época, da tortura à crise do casamento, do aborto à censura, da febre do consumo à violência policial, do projeto de “Brasil grande” à urbanização acelerada.

 

 

O filme, em cartaz no IMS Paulista e no IMS Rio, é uma colagem de cenas de dezenas desses filmes, organizada mais ou menos por blocos temáticos. Ainda que se possa discutir a arbitrariedade do recorte e da montagem dos fragmentos, com uma ou outra forçação de barra para induzir um determinado sentido, o resultado é inquietante e iluminador, mostrando como até mesmo o cinema aparentemente mais escapista ou alienado sempre fala sobre seu tempo, seja de modo deliberado ou a contrapelo (e às vezes a contragosto).

Subsidiariamente, revendo hoje essa filmografia é chocante perceber como manifestações de franca misoginia e homofobia eram naturalizadas de um modo impensável hoje em dia. Aquilo que passava batido hoje soa como aberração inconcebível. Em alguma coisa evoluímos, enfim.

 

A destruição de Bernardet

O documentário de Claudia Priscilla e Pedro Marques é uma obra sui generis, que quase se poderia inserir na tendência atual da chamada autoficção. É um filme com e sobre o franco-brasileiro (nascido na Bélgica) Jean-Claude Bernardet, crítico, pesquisador, roteirista, cineasta, ator e uma das figuras centrais do pensamento cinematográfico brasileiro.

 

 

Inquieto e multifacetado como seu personagem, o documentário traz cenas da vida cotidiana de Bernardet, conversas suas com parceiros criativos (como os cineastas Cristiano Burlan e Tata Amaral), material de arquivo e até uma sarcástica autoentrevista feita pelo octogenário crítico. Velhice, vitalidade criativa, família, sexualidade, arte, suicídio – todos esses temas e mais alguns passam pelo crivo implacável do cinebiografado, cuja lucidez é matizada pelo humor e pela ironia.

Resulta disso um filme de muitas camadas, um diabólico jogo de espelhos: quando pensamos estar mais próximos do personagem “real” é quando mais ele nos escapa. No fundo do labirinto, Jean-Claude sorri como quem diz que nenhum indivíduo é conhecível em sua plenitude. Muito menos um indivíduo como ele.

, , , , , , , , , , ,