Eufrates

Em processo

28.06.17

Eufrates é o título (provisório) do romance no qual trabalho desde o começo de 2016. Sua gênese está em algumas anotações que fiz há mais de quatro anos, quando comecei a escrever meu livro anterior, Abaixo do Paraíso. Este tomou outro rumo, mas algumas das ideias que me ocorreram enquanto o concebia voltaram com força no momento em que comecei a pensar em um novo projeto. Assim, Eufrates é um desdobramento de Abaixo do Paraíso, embora a ação se desenrole muitos anos antes (em 1989) e, salvo exceções, envolva outros personagens. Ao menos por enquanto (pois tudo muda, o tempo todo), o trecho abaixo é o que abre o novo romance. A previsão é que eu termine de escrever Eufrates até o final deste ano e ele seja lançado em meados de 2018, pela José Olympio.

 

Não fazia muito tempo que asfaltaram a rodovia, coisa de seis ou sete anos, pois Antônio se lembrava da última vez em que viera, ele e a mãe sacolejando pela estrada enlameada num ônibus tão velho quanto este que agora o trazia de volta, sozinho dessa vez, por sua própria conta, abastardado e trêmulo de frio e nervosismo. O veículo contornou o trevo e, após resfolegar feito o animal doente que era, tomou o rumo da cidadezinha lá embaixo enquanto as janelas batiam com violência, soltas, incapazes de conter o vento que entrava furioso pelas brechas e preenchia o seu interior desde que deixara o terminal rodoviário em Goiânia, quase duas horas antes, urrando a cada troca de marcha, engasgando aqui e ali, um veículo senil e tuberculoso dando a entender que poderia morrer a qualquer momento e deixá-los na mão, expulsá-los de seus intestinos enregelados e quase vazios, todos os sete passageiros. À direita de Antônio, na quinta fileira, um velho ignorava os avisos de proibição e fumava um cigarro de palha, os olhos mortiços fitando a paisagem, o Aprendizado Marista aparecendo e desaparecendo à direita, uma longa tragada e então o pescoço virando maquinalmente a fim de ver a estátua do Cristo Redentor um pouco mais abaixo, à esquerda, quando, a uns cem metros da linha férrea, o ônibus diminuiu a velocidade com brusquidão e, nos fundos, uma criança de colo começou a chorar, a mãe tentando acalmá-la, a gente já chega, e, perto delas, um jovem casal que não calara a boca em toda a viagem ria de alguma coisa, a moça dizendo bem alto para o rapaz que ele era tonto demais da conta, por que fica inventando essas coisas? O velho se endireitou na poltrona após a freada e os solavancos, e uma freira que até então cochilava na primeira fileira, boca aberta, os lábios finos ressecados, fez o mesmo e esfregou o rosto com as duas mãos, mal contendo um bocejo.

— A gente já chega — repetiu a mãe.

O ônibus voltou a ganhar velocidade, a cidade lá embaixo menos visível à medida que desciam, a torre da igreja se destacando em meio à natureza morta do casario que se espalhava desorganizado, um lugar feio, mas não particularmente feio, igual a tantos outros na região que margeava a estrada de ferro, talvez um pouco mais velho do que a maioria, mas sem nada que distinguisse a sua feiura, nada que a tornasse única ou apreciável. A freira tossiu, lançando o corpo para a frente, era muito alta e magra, e por um instante, ao endireitar o corpo outra vez, olhou para trás e seu olhar cruzou com o de Antônio, este quatro fileiras atrás e à sua esquerda, uma breve troca de sorrisos, como se ela o reconhecesse, talvez imaginando se tratar de algum ex-aluno do colégio, os óculos pequenos e redondos, a magreza tão descolorida quanto a cidade que adentravam,  frio e secura e Antônio com os braços cruzados, desacostumado com o clima, saudoso do Norte, de uma casa onde crescera e da qual fora, mal ou bem, expulso, lembrando das coisas todas que ouvira da mãe dias antes, ela falando com a voz roufenha de fumante, olha, eu não sei o que te faltou, onde foi que errei, mas desisto de você.

— Seu pai talvez te desse jeito, que Deus o tenha, mas eu não consigo. Que Deus me perdoe.

Estava sentado à mesa da cozinha e ela em pé junto à pia, um cigarro aceso, tragava, batia as cinzas em um cinzeiro que deixara na ponta da mesa, esticando o braço roliço com um gemido a cada vez.

— Liguei pro Inácio ontem.

Era a informação que esperava ouvir desde quando deixara a delegacia na tarde do dia anterior, mancando porque o carcereiro se despedira com uma joelhada no trato iliotibial de sua coxa direita, golpe que o levou ao chão do corredor, contorcendo-se, enquanto todos ao redor, presos, delegado, escrivão e policiais, gargalhavam. Pelo menos não me acertou no saco, pensou. Meia hora antes, o delegado viera lhe dizer que seria liberado, um favor que faço pra sua mãe, o último, está me entendendo? Mas Antônio sabia que não se tratava de um favor, que a mãe provavelmente não tinha sequer se dado ao trabalho de ligar, não era do feitio dela, de jeito nenhum; a verdade é que eles não tinham muita coisa para enquadrá-lo, ninguém que assistira à briga diria nada, o infeliz que surrara já não estava no boteco quando a viatura chegou, e só levaram Antônio porque, bêbado demais, continuava no local, sangue nos punhos e uns olhos de louco, bebendo cachaça ao balcão, quando os PMs se aproximaram, contornando a mesa de sinuca.

— Onde foi que machucou as mãozinhas? — perguntou um deles, enquanto o outro se ocupava em falar com os fregueses, que balançavam a cabeça e encolhiam os ombros, ignorantes de tudo.

— Esmurrando uma goiabeira.

—  Que goiabeira?

—  Uma goiabeira lá do quintal de casa.

— Por quê?

— Porque não gosto de goiaba, uai.

Soltou um risinho mais bêbado do que propriamente escrachado, virou a dose de cachaça que estava à sua frente e fazia uma careta quando sentiu o soco um palmo abaixo do sovaco. Assim que foi ao chão, teve o cuidado de mirar nos coturnos do PM antes de vomitar uma bela quantidade de cerveja, cachaça, torresmo e caldo de feijão, uma pasta aguada de cheiro tão peculiarmente repugnante que o soldado mal teve tempo de conter a sua própria contribuição, coisa de que depois se arrependeu: tivesse também vomitado, acertaria em cheio a nuca e as costas de Antônio, caído a seus pés e se contorcendo de dor e riso.

Ao chegar em casa, imundo e mancando um pouco, depois de passar quarenta horas preso com outros bêbados, tomou um banho gelado, fez e comeu uma macarronada com bacon e almôndegas e depois se trancou no quarto, ignorando a mãe que, deitada no sofá da sala, assistia à televisão.

Na manhã seguinte, deparou-se com a figura parada junto à pia, cigarro aceso, e então era bastante óbvio o que ia acontecer.

— Inácio precisa de ajuda na chácara. Você vai se quiser, mas ele disse que te recebe e dá trabalho, te ajuda, se você deixar. E… é verdade o que estão dizendo? Você bateu no filho da Cida por causa duma guimba de cigarro?

Uma tragada longa, seguida por outra, mais curta, e os olhos tremendo como se fosse chorar, embora estivesse longe disso; Antônio olhou para ela e não sentiu absolutamente nada. Nem raiva, tristeza, arrependimento.

Nada.

Uma mulher de quarenta e sete anos com um cigarro. A desgraça era que a casa pertencia a ela, tanto que o expulsava sem a menor cerimônia, e também olhava para ele e parecia não sentir nada, parecia mesmo incapaz de enxergar algo do marido morto ou dela própria no rapaz ali sentado.

Talvez não houvesse mesmo nada.

Acontece.

Desviaram os olhos ao mesmo tempo, ela para o chão, ele para a geladeira, os adesivos da campanha presidencial que a mãe colecionava, Juntos chegaremos lá, Vamos Collorir o Brasil, Lula lá, e então a voz rouca, cansada:

— Te dou até amanhã cedo pra aprontar as suas coisas e cair fora. O mundo vai te ensinar o que não consegui. O mundo, a vida.

Antônio concordou com a cabeça e se levantou, correu ao quarto, pegou uma bolsa, meteu ali dentro duas calças, cinco camisas, seis pares de meias, quatro camisetas, meia dúzia de cuecas, os chinelos, rumou para o banheiro, alcançou a escova de dentes e o aparelho de barbear, depois saiu sem se despedir, ela continuava na cozinha, fumando um cigarro atrás do outro, talvez sentisse algo, afinal, talvez seja melhor do que eu, ele pensou ao montar na motocicleta, só faltou dizer que faz isso pro meu próprio bem, que me coloca na rua pra me ajudar, que só quer me ajudar. Mas ela disse, não? O mundo vai te ensinar o que não consegui. O mundo, a vida. Ora, se o mundo vai ensinar é porque eu posso aprender, logo não sou um caso perdido. Daí que é, sim, como se dissesse: faço isso pro seu bem, meu filho.

Foi à procura de um conhecido, um ex-colega de escola cujo pai era vereador e, portanto, endinheirado; uns dois anos antes, preocupado com as companhias e porres e farras do filho, o velho montou uma videolocadora e ordenou que ele tocasse o negócio para se manter ocupado, fazer alguma coisa da vida, criei filho vagabundo, não (variação grosseira do faço isso pro seu bem). Para surpresa de todos, ele não só tomou gosto pelo negócio como já pensava em abrir uma papelaria na sala comercial vizinha. Casamento com uma moça de boa família, maçonaria, Rotary Club, talvez seguir os passos do pai: o céu era o limite. Antônio irrompeu na locadora, ignorou as perguntas sobre a briga

(— Que história é essa de quebrar o nariz e o queixo daquele imbecil por causa de uma guimba?)

e a prisão

(— É verdade que te enrabaram gostoso lá dentro?),

disse que ia embora de Minaçu e apontou para a XLX 250R ano 85 branca e vermelha estacionada na calçada defronte à loja.

— Você sempre quis, não quis?

— Posso comprar uma nova.

— Mas daí não vai me ajudar.

— Sei, não.

— Qual é, faço um preço camarada, você revende por mais e todo mundo fica feliz.

— Sério?

— Meio desesperado aqui. Preciso cair fora.

Combinaram um valor, um terço agora, o resto no mês que vem, te faço os cheques agora mesmo.

— Valeu, cara.

Eram quase duas da tarde quando, após resolver tudo no cartório e se despedir do amigo, ele foi à agência da Caixa. A essa altura, não estava mais com pressa; sabia que o próximo ônibus para Goiânia só sairia por volta das onze da noite. Descontou o primeiro cheque, depositou a maior parte do dinheiro e, com o resto, carregando a bolsa, foi à rodoviária comprar a passagem. Meteu a bagagem no guarda-volumes, sentou-se ao balcão de uma lanchonete e pediu um café. Só comeria mais tarde, decidiu. Uma longa espera pela frente, seguida por uma viagem não menos demorada, e a incerteza sobre o que fazer uma vez que chegasse à capital: seguir até Silvânia e se entender com o primo da mãe ou cogitar outra possibilidade, qualquer que fosse? Decidiu que só pensaria a respeito quando já estivesse em Goiânia e depois de um bom descanso.

Chegou à capital na manhã seguinte, um resto cuspido porta afora, os olhos ardendo de sono e cansaço, as pernas bambas, os pés inchados e os intestinos prontos para informar o que acharam do contrafilé a cavalo que ingeriu ainda na rodoviária em Minaçu. Correu ao banheiro da rodoviária, ajeitou-se como pôde em um reservado e liberou, com lágrimas nos olhos, o que lhe pareceu uma porção considerável da própria alma putrefeita.

Hospedou-se em um hotel barato na rua 68, perto da esquina com a Paranaíba. Tomou um banho e se jogou na cama. Dormiu o dia inteiro. Quando afinal voltou à rua, faminto, eram quase oito da noite. Deu com um boteco um quarteirão abaixo, as mesas na calçada, sentou-se e pediu uma água mineral, uma cerveja, uma dose de Velho Barreiro, um caldo de feijão e uma porção de mandioca frita. Trouxeram tudo de uma só vez. Bebeu a água, esperou um pouco, comeu uns pedaços de mandioca, bebeu a cachaça, mais mandioca, o caldinho de feijão e só então começou a se ocupar da cerveja, meio quente a essa altura, mas não se importou. Foi só então que voltou a pensar no que faria da vida. Continuar por ali, arrumar um trabalho qualquer, ou seguir viagem até Silvânia, só mais oitenta quilômetros, e ver como Inácio o receberia na tal chácara? Se fosse para o interior, ao menos teria casa e comida garantidas e evitaria gastar o dinheiro obtido com a venda da moto, além de provavelmente receber — junto com os sermões de praxe — alguns trocados. Não demorou muito para se decidir, até porque não conhecia ninguém em Goiânia e o máximo a arranjar seria um trabalho como frentista ou coisa parecida, de tal forma que logo estaria procurando algum por fora, certeza que sim.

Embora já estivesse decidido, permaneceu em Goiânia por mais uns dias. Vagabundeava pelo centro, ia aos cinemas pornôs, bebia com desconhecidos, inventava histórias e ouvia histórias inventadas, testemunhava brigas por bobagens, por futebol, por causa das eleições. Certo dia, acordou bem cedo e com uma ressaca pegajosa, e se deu conta de que estava entediado. Arrumou as tralhas, acertou o que devia no hotel, ligou de um orelhão avisando que estava a caminho e pegou a primeira lata-velha com destino a Silvânia.

Enquanto congelava, serpenteando pela rodovia, pensou em Inácio, o primo com quem a mãe crescera, criados como irmãos, pensou em Silvânia e na chácara, pensou nas duas semanas, fim de dezembro, início de janeiro, que passara ali havia quase uma década, o pai ainda vivo, a última viagem que fizeram em família (o velho morrendo no inverno seguinte, rasgado ao meio por um derrame que o atingiu quando voltava da feira com uma sacola cheia de verduras, morto em questão de segundos, os tomates rolando pela calçada, dois deles caindo do meio-fio e dali até um bueiro), pensou nas tardes chuvosas em que se sentava na varanda e olhava para a água turva da pequena piscina de cimento, ele e Rosa Maria, filha de Inácio, lado a lado, mas em silêncio porque não se gostavam muito, a menina birrenta e raivosa, sobre quem disseram que despejara um litro de álcool no cachorro da mãe, um pequinês, e ateara fogo, o bicho em chamas numa carreira desabalada noite adentro, depois se debatendo em agonia no gramado defronte a casa até que o Inácio lhe acertou um tiro com sua Beretta.

O que será que virou dela? O que que fizeram de Rosa Maria?

Devia ter uns dezoito anos agora, aquela que aos nove queimara vivo um cachorro, que não era de falar muito, sempre pelos cantos, observando os pais e as visitas como um pescador observa os peixes que fisgou se debaterem presos na matula em meio às pedras, sentindo a água corrente pela derradeira vez em suas vidas.

Todas essas coisas passaram pela cabeça de Antônio, céleres e agoniantes feito o cachorro em chamas, e ele esboçou um sorriso triste, aspirando a fumaça do cigarro de palha do vizinho enquanto o ônibus afinal adentrava a cidade, passava pelo Ginásio Anchieta e sua longa fileira de eucaliptos e descia a avenida Dom Bosco em direção à rodoviária onde, conforme combinaram ao telefone horas antes, Inácio esperava por ele. Desde que eu tenha uma goiabeira pra esmurrar, pensou, olhando para as mãos que agora repousavam no colo, vai ficar tudo bem.

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