O diretor Andrzej Żuławski

O diretor Andrzej Żuławski

A ruína da mente adolescente

Literatura

22.05.17

1. A adolescência está em tudo quanto é canto. A sensibilidade ocidental parece dançar feliz sob seu estandarte em direção ao abismo, embora os adolescentes componham menos de ¼ da população mundial. Não falo de juventude, propriamente, mas de adolescência: descontrole físico e ontológico, beligerância gratuita, confusão mental, a sensação injustificada de que o futuro nos pertence e a conjunção entre uma libido hiperativa e a incapacidade de ação – todo o monstruoso coquetel da imaturidade, que deixará um travo de catuaba e vodca vagabunda na garganta do adulto. Você sabe; também passou por isso.

Se nos fosse dado escolher um autor como farol da imaturidade, um olho mal-humorado fixo nesta terra de memes e videoclipes tumultuados por bundas e carros possantes, Witold Gombrowicz seria o mais apropriado. Sua ficção lida como nenhuma outra com a transição entre a criança e o adulto, e com as cicatrizes que ela pode deixar no corpo envelhecido. Em Ferdydurke (romance de 1961, lançado no Brasil pela Companhia das Letras, em tradução de Tomasz Barcinski): “eu acreditava piamente que não era adequado abandonar o criançola que vivia em mim […]; e todo aquele que tem um fedelho que o persegue sem cessar não tem o direito de se apresentar publicamente sem ele”.

Ainda o mesmo romance: “Nosso elemento básico é a eterna imaturidade. O que pensamos e sentimos hoje será, sem dúvida, uma bobagem para nossos bisnetos. Portanto, muito mais adequado seria se reconhecêssemos já hoje como bobagem tudo aquilo que o passar do tempo assim definirá”. Ou, como diz uma de suas máximas: “Tudo está forrado de criança”.

Gosto de pensar em Gombrowicz como a contraparte vital de E. M. Cioran. Enquanto Cioran se preocupa com a inação e a morte – ou com a maravilha que seria não ter nascido –, Gombrowicz se volta para a época em que a vida está em seu auge, mas somos completamente inábeis para fazer realmente qualquer coisa. O desgosto, porém, é similar, uma espécie de desprezo transcendental pela vida que segue. No caso de Gombrowicz, e em menor grau no de Cioran, esse desgosto é traduzido em certa comicidade rabugenta, parente do riso medonho dos clowns de Beckett. Conheço uma única foto em que Gombrowicz parece contente. Em todas as outras, a impressão é a de que o sol está nos seus olhos e tudo lhe parece deplorável:

Minha favorita é aquela em que Rita Labrosse, romanista e teórica nascida no Canadá que viria a ser sua esposa, sorri a solto para a câmera enquanto Gombrowicz posa, meio contrariado, olhando para o horizonte. É de 1966 e decidir se Witold, homem civil, era ou não rabugento é irrelevante para nós.

2. O último filme de Andrzej Żuławski foi uma adaptação de Cosmos, romance de 1965, o último que Gombrowicz escreveu. Żuławski lançou o filme em 2015 e morreu em 2016; Gombrowicz, em 1969. Poderíamos tentar ler um significado nessa coincidência de fins de linha, mas é melhor não.

Minha primeira reação crítica depois de assistir ao filme foi dizer que é tão bonito que deu vontade de quebrar uma xicrinha de porcelana, dessas bem pequenas, herdadas de bisavós caprichosas que um dia foram à França e voltaram com um serviço de mesa. Atirar na parede, com o pires e tudo. Por sorte, não tinha xícaras à mão nem bisavós caprichosas.

O filme e o romance têm algumas diferenças de trama, cenário e caracterização, mas, em linhas gerais, é isto: um estudante busca refúgio no campo após falhar um exame. Encontra um amigo, Fuks, que passa por problemas no emprego, e decidem procurar juntos uma hospedaria. No caminho, descobrem um pardal enforcado num arame preso a um galho. “Esta excentricidade gritava a plenos pulmões e indicava o envolvimento da mão de um ser humano que penetrara no matagal. Mas quem? Quem o enforcou e por quê? Qual seria o motivo?… Fiquei pensando, em confusão mental, em meio a esta situação com um milhão de combinações” (Cosmos em edição da Companhia das Letras, tradução de Barcinski com Carlos Alexandre Sá).

Eis o início da ruína da mente adolescente. Como dar sentido ao pardal? E ao desespero hormonal causado pelas duas jovens que conhece na pensão em que se hospedaram? E ao casal dono da pensão, a esfuziante madame Wojtys, que sofre de uma narcolepsia estatuária, e Leon, com seu latinório pomposo e incompreensível? Como lidar com todos os sinais instintivos de que a vida quer dizer algo e, ao mesmo tempo, com as provas cabais de que não faz sentido algum?

Quando eu era garoto, minha família entrou em sua breve fase kardecista. O códice espírita estava espalhado pela casa, e eu li inteiro. Para o adolescente irritado com a aparente irracionalidade das religiões tradicionais, Kardec faz bastante sentido, está em linha com nosso cartesianismo escolar, a teoria evolucionista e, se você olhar com carinho, com a teoria das cordas. Tudo, por uns longos meses, passou a ser interpretado no crisol espírita, personalizado pelo ego adolescente: eu não queria ser a reencarnação nem de César nem de Cleópatra, mas sim de Jorge Luis Borges ou João do Rio. Pesquisava quando meus escritores favoritos tinham morrido, para ver se era possível ser Georges Perec reencarnado. As notícias da guerra eram explicadas pelo estágio pouco evoluído deste planeta, as dores, pelo mistério das minhas vidas passadas. Tentei inclusive esboçar uma teoria geral da arte segundo o espiritismo, que evidentemente, e graças a Deus, não deu em nada. Enfim, o cosmo podia fazer sentido, até que eu envelheci e encontrei meu pardal enforcado no galho. Não foi um episódio específico. Simplesmente descobri que faltava sentido.

E o que veio depois se parece muito com o filme de Żuławski. Gestos, fatos, mortes, bocas e cores, tudo se tornou elemento solto, a ser juntado da melhor maneira possível pela mente nervosa do adolescente. Claro, nenhuma peça encaixa, não foram feitas para isso. Houve explosões de libertação e arrastados períodos de cansaço. Experimentei, pela primeira vez, a solidão cósmica. Nada faz sentido. É preciso se acostumar com o desabrigo, mas como? Como em algumas cenas de Cosmos, um grito era ensaiado, a boca abria em desespero quase fingido, mas nenhum som se articulava. Quão ridículo seria gritar? Afinal, já somos adultinhos. Mas o clichê do “grito sufocado na garganta” também é patético. Há muito de covardia na maturidade: “mais adequado seria se reconhecêssemos já hoje como bobagem tudo”. Tudo.

Só depois é que a gente aprende o óbvio, que de tão óbvio soa como máxima motivacional: a vida não faz sentido, a graça é que cada um inventa o sentido que quiser para ela. Mas vai tentar explicar isso para um adolescente.

Cosmos é a encenação de uma dissolução, a transição do mundo fechado e épico da adolescência para o pidgin-Joyce da idade adulta, que, em Gombrowicz, geralmente degenera em balbucios. Considere Leon (no filme, encarnado pelo impressionante Jean-François Balmer), um dos donos da pensão, e seu “neologês” cheio de tralalás, tum-tuns e kukus, pretensioso e adorável: “Era difícil compreender aquele monte de palavras sem sentido. […] às vezes começava de uma forma totalmente louca e terminava de forma compreensível, ou vice-versa”. O dialeto de Leon é uma visão possível de futuro. A maturidade em plena neurose.

Poderíamos ler em Cosmos o que quisermos. Um Bildungsroman às avessas, cujo fim é a deformação. A persistência do impulso vanguardista (uma “vanguarda retrô”, a confiar em A. O. Scott, que resenhou o filme para o New York Times). Uma visão da face grotesca do Homo sapiens (segundo Roger Ebert, este é o paradoxo central do cinema de Żuławski, que poderíamos estender sem muito prejuízo à obra de Gombrowicz: “Those who do understand the bottomless grotesquery of humanity are addicted to the good parts that lay beyond“).

Poderíamos ler inclusive a condição pós-moderna de Jean-François Lyotard, na qual todas as grandes narrativas ruíram (o famigerado fim dos guias maiúsculos: Deus, a Pátria, o Homem etc.), abrindo alas para o estandarte adolescente em toda sua histeria. Ou a experiência do próprio Gombrowicz no exílio argentino (o autor estava em Buenos Aires quando estourou a II Guerra Mundial e permaneceu na cidade até 1963). No entanto, como deve ter ficado claro, a abundância de possibilidades faz parte da comédia. Você pode rir. Ou tentar gritar.

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