Revi recentemente O medo devora a alma (1974), de Fassbinder, por conta de um romance que eu estava escrevendo. O filme me deixou em êxtase. Ando cada vez mais obcecado pelo cineasta alemão, conforme vou redescobrindo online as cópias restauradas dos seus clássicos. Não sabia, por exemplo, que ele tinha realizado uma ficção científica. Só no mês passado, jantando na casa de um amigo português, autor de ficção científica, foi que ouvi falar pela primeira vez de O mundo por um fio, filme em dois episódios que Fassbinder dirigiu para a televisão alemã, em 1973.
Baseado no romance Simulacron-3 (1964), do americano Daniel Galouye (1920-76), o filme antecipa o mundo da realidade virtual. Uma grande corporação desenvolve, por meio de computadores, uma realidade paralela na qual pretende testar projeções de futuro. No início do filme, o cientista encarregado do projeto enlouquece e morre, sendo substituído pelo protagonista, o Dr. Fred Stiller, encarnado por Klaus Löwitsch, que na época era conhecido como astro de uma famosa série policial da TV alemã.
É irônico que as ficções científicas fiquem tão datadas, por mais proféticas que sejam. O que sobressai no futuro que Fassbinder imagina em 1973 é uma caricatura de época. O filme foi rodado em Paris, porque Paris era o canteiro de obras da “cidade do futuro”, segundo depoimento do roteirista, no documentário Um olhar avançado sobre o presente, de Juliane Lorenz, bônus do DVD francês. Os edifícios de La Défense subiam como um sonho de ultramodernidade e serviam de fato a um cenário futurista perfeito, mas quando entramos no mundo virtual, que no filme representa a experiência de projeção de futuro, o anacronismo fica gritante. Os cenários têm a aparência art nouveau dos velhos cafés parisienses. A projeção do futuro é o passado.
Todo filme de ficção científica está de certa forma condenado a uma representação paroxística do seu tempo, ou seja, a fazer uma estilização do passado que só o espectador do futuro será capaz de ver. Fassbinder parecia ter consciência dessa sina e jogar com ela ao conceber um futuro deliberadamente retrô e ultrapassado para caracterizar o mundo virtual criado pela grande corporação.
É um mundo povoado por “unidades identitárias”, homens e mulheres aos quais não ocorre que sejam meras criações de computador. A simples menção a “unidades identitárias” para definir esses espectros virtuais (que sofrem entretanto das mesmas angústias e dos mesmos problemas existenciais dos homens que os conceberam) é surpreendente num mundo onde noções como imagem e identidade ganharam o sentido hegemônico que têm hoje. Mas O mundo por um fio vai além da antecipação. Tudo diz respeito a um jogo de espelhos e à manipulação do tempo.
Antes de morrer louco, o criador do projeto deixa uma charada: o desenho de um guerreiro grego ao lado de uma tartaruga. É uma referência ao paradoxo de Zenão, segundo o qual, se o tempo e o espaço são infinitamente divisíveis, como supõe a ciência, Aquiles nunca poderá alcançar a tartaruga que saiu na sua frente, com a vantagem de alguns metros. Por mais que ele corra, a tartaruga estará sempre adiante do guerreiro, matematicamente, nem que seja por uma fração de milésimo de segundo ou milésimo de milímetro. O paradoxo é a chave para o entendimento do filme.
A representação da realidade e a interpretação dos atores, às vezes deliberadamente canhestra, são artificiais a ponto de a realidade virtual se confundir com a suposta realidade que a criou. O protagonista passa a suspeitar que o mundo em que ele vive afinal não seja tão diferente do mundo virtual. Como sua desconfiança não é compartilhada, fica sempre a dúvida de que seja fruto de um delírio paranoico. Como seu antecessor, o cientista acaba louco.
A câmera giratória e os cenários com espelhos e transparências refletem nas imagens a premissa da história: estamos num circuito fechado, que anula a transitividade das representações em geral e da ficção científica, como paródia do presente, em particular. A ficção científica já não é metáfora ou paródia de nada. As representações se sobrepõem. Já não há realidade, só reflexo do reflexo, projeção da projeção, distopia da distopia. A sala de cinema onde está o espectador não é menos irreal do que o filme ao qual o espectador está assistindo. Como no paradoxo de Zenão, O mundo por um fio alude a uma espiral ininterrupta de representações, à imagem de um labirinto borgiano no qual a realidade já é uma distopia, paródia de outra realidade, e assim por diante, até o infinito.