Uma polêmica tem movimentado a opinião pública portuguesa nos últimos dias. Tudo começou com a provável censura a uma exibição de fotografias do artista Robert Mapplethorpe (1946-1989) no Museu de Arte Contemporânea de Serralves.
Na última sexta-feira, 21, o pedido de demissão do diretor artístico do museu, João Ribas, causou agitação. A razão do pedido foi a discrepância entre o que Ribas prometeu ao público e o que de fato foi visto na mostra, sugerindo interferência por parte da administração. Além da definição de um espaço interditado a menores de 18 anos, tudo indica que foi determinada a exclusão de algumas obras. Como garantiu publicamente dias antes da abertura que não haveria qualquer restrição, apenas um aviso à entrada, Ribas se sentiu desautorizado. Em resposta, muitas pessoas têm exigido o desligamento de membros do Conselho da Fundação de Serralves.
“Vivemos num momento de profunda incerteza política, com o surgimento do populismo de direita, o ultranacionalismo e as ameaças às liberdades artísticas e académicas”, lembram os signatários, a maioria ligada ao meio cultural, de uma carta aberta à administração de Serralves. “Nesse contexto, é profundamente lamentável que [se] tenha perdido a oportunidade de defender os valores que deveriam tê-la sustentado como um lar para a cultura, o pensamento e a liberdade, e preferir sucumbir ao puritanismo moral e ao conservadorismo social”.
Em entrevista ao jornal Observador, Pedro Lapa, crítico e historiador de arte, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e ex-diretor artístico de dois museus portugueses, observa que o “obsceno, o abjeto, o informe, o pornográfico, [tudo] tem lugar na arte. A arte lida com tudo, não exclui”. Ou seja: observa o que deveria, a esta altura do campeonato, ser evidente. Não é.
As muitas controvérsias que continuam a cercar o episódio enquanto escrevo este texto, no dia 25, não impedem que se olhe mais atentamente para alguns paralelos curiosos. Com ou sem censura, a discussão que se formou em torno da figura e da obra de Mapplethorpe, ao mesmo tempo em que diz algo sobre o presente, faz emergir um episódio do passado.
Robert Mapplethorpe — cujo trabalho é associado sobretudo ao nu masculino e ao homoerotismo — ocupou uma posição de destaque nas chamadas guerras culturais. Em 1990, The Perfect Moment [O momento perfeito], uma exposição com 125 fotografias programada para percorrer algumas cidades norte-americanas, deixou políticos conservadores ensandecidos. Era um período difícil: o mundo assistia em pânico ao avanço da epidemia de aids, doença que havia matado Mapplethorpe um ano antes.
Em Cincinnati, no estado de Ohio, o Contemporary Arts Center (CAC) e seu diretor, Dennis Barrie, foram processados por obscenidade. Foi a primeira acusação criminal contra um museu nos Estados Unidos. Cinco imagens formavam a base da ação, tendo o juiz se recusado a considerar The Perfect Moment como um todo.
Com a coerência impecável tantas vezes demonstrada pelos moralistas, uma organização local chamada Citizens for Community Values [Cidadãos em prol dos valores comunitários] distribuiu algumas das fotografias que não queria que as pessoas vissem — parte das quais nem sequer tinha Mapplethorpe como autor —, para provar como eram abjetas. Um repórter que acompanhava o caso sugeriu que, a depender do resultado, os membros da CCV também também deveriam ser processados por obscenidade, assim como as livrarias e as bibliotecas onde se podia encontrar reproduções idênticas.
Houve uma série de momentos curiosos ao longo do julgamento, que contou com especialistas de todo o país. Os membros do júri, que nunca tinham visitado uma galeria de arte ou um museu, deliberaram por menos de duas horas antes de inocentar os acusados.
Quase trinta anos depois estamos de volta a uma polêmica cujo centro é o trabalho de Mapplethorpe. E, por que não, de volta às controvérsias que marcaram a exposição Queermuseu e se alastraram pelo Brasil a partir de setembro de 2017.
O caso brasileiro oferece uma peculiaridade. Na esteira da Queermuseu (pouco visitada por quem gritava contra ela), a filósofa norte-americana Judith Butler, autora de Problemas de gênero (pouco lido por quem gritava contra ela), desembarcou no país para participar de um seminário sobre democracia. O que se seguiu foi chocante e deprimente.
Na escala das nossas vergonhas, essa talvez tenha chegado ao nível das recentes tentativas de ensinar nazismo aos alemães e economia à revista The Economist. Em uma demonstração aterradora de ignorância e truculência, manifestantes queimaram uma boneca representando Butler. Antes de embarcar de volta para os Estados Unidos, a intelectual foi agredida no aeroporto. Nos discursos inflamados nas redes sociais, tudo se misturava: Queermuseu, Judith Butler, “ideologia de gênero”. Era uma bola de neve, sem começo nem fim.
Por mais que os países e as décadas sejam distintos, em essência não nos afastamos muito do episódio de Cincinnati. Continuamos a explorar e a mobilizar o pânico e o moralismo, buscando brechas na educação e fissuras na tolerância para dizer o que a arte deve ou pode representar, e de que maneira, e para quem.
Mais do que nunca, é significativo que tenham feito circular aquelas imagens em 1990 — imagens que deram às pessoas o prazer do nojo e do ultraje, emoções cuja disseminação, por imitação, são sempre eficazes quando se trata de rejeitar algo ou alguém de modo sumário, e quando se trata de excluir, isolar e estigmatizar. Imagens que circulavam em surdina e à vista de todos. Oficialmente, com seleção e ordem preestabelecidas, seu lugar era o CAC.
O acesso à informação e a facilidade de comunicação, inconcebíveis há meros trinta anos, têm tornado mais difícil, e não mais fácil, mudar de opinião em relação ao que quer que seja. A raiva e a indignação em comum nos conectam. Não buscamos o contexto ou o relato completo, mesmo tendo fácil acesso a ambos. Se buscamos o confronto com aquilo que é objeto de uma disputa (como a obra de Mapplethorpe), estamos inclinados à rejeição. Se o discutimos sem conhecer, também.
Que isso tenha atingido os museus, espaços que pedem reflexão e calma, abertura e disponibilidade, que nos pedem que se veja o que está ali de uma maneira que escapa ao imediatismo, que têm um cuidado e uma lógica próprios ao que está sendo exibido, espaços em que, aliás, o que está à vista nem sempre é acessível ou simples, é ainda mais atroz.
Cada vez mais se trata de como consumimos, selecionamos e reproduzimos informação. Em menor escala, tudo isso esteve presente em Cincinnati, e em ocasiões anteriores e posteriores. Apenas aumentamos a cacofonia e a intensidade dos gritos, sem que com isso seja possível identificar e assimilar algum discurso dissonante.
Hoje, como ontem, fazemos com que aquilo de que só temos a mais vaga ideia assuma contornos definidos — o exato oposto do que nos pede uma exposição de arte. A partir daí, para evitar o colapso das certezas, precisamos lutar para preservar o que já havíamos definido, delineado, mapeado. Nosso espetáculo democrático, cada vez mais triste, revela que não podemos, não sabemos ou não queremos diferenciar a verdade da mentira. Qualquer gritaria é imediatamente reproduzida, desde que seu efeito, a depender do teor e da finalidade, possa causar adesão ou rejeição imediata. Não faz diferença que, para que tudo isso seja possível, tenhamos de simplificar o que não é simples. É assim que nos posicionamos e é assim que nos reconhecemos.
Mas não é assim que deveríamos discutir Mapplethorpe ou qualquer outro artista.
No ensaio “Mapplethorpe/Almodóvar: Points and Counterpoints” [“Mapplethorpe/Almodóvar: Pontos e Contrapontos”] — em que comenta uma exposição de Mapplethorpe com curadoria do cineasta Pedro Almodóvar —, a escritora Siri Hustvedt destaca a visão apolínea do artista, ainda que haja uma boa dose de dionisíaco em sua obra. O trabalho de Mapplethorpe seria “uma celebração anônima da forma masculina”, pois os homens retratados não têm nada que os distinga e defina de modo individual. São pura forma. “Mapplethorpe insiste em fronteiras, em entidades visuais estáticas e discretas, em uma beleza disciplinada feita de limites. Apresenta seus objetos masculinos como ideais rígidos, musculosos, másculos”. Para Hustvedt, tudo em Mapplethorpe se resume ao “drama de enxergar”. Ela não está dizendo nada original. Alude, na verdade, a uma base antiga e comum a tudo que podemos entender como arte.
Em Só garotos (Companhia das Letras, tradução de Alexandre Barbosa de Souza), relato em que resgata as memórias da juventude ao lado de Mapplethorpe, Patti Smith descreve as primeiras experiências do artista com uma Polaroid, no início da década de 1970. Mapplethorpe, que mal tinha dinheiro para pagar o filme da máquina,“estava filtrando o mundo através de sua própria estética”. É outra maneira de dizer o mesmo que Hustvedt. O óbvio que precisa ser dito.
A arte diz respeito ao drama de enxergar. Nele estão implicados tanto quem produz como quem vê o que é produzido. Pode não ser fácil. Mapplethorpe nem sempre é. Fechar os olhos deveria ser uma escolha pessoal, legítima e defensável, mas em alguns casos parece determinada pela visão de um coletivo hostil: uma visão desde o início fechada, rotulada, etiquetada e arquivada.