Devo ter lido Modos de ver pela primeira vez na década de 1980. Não me recordo das circunstâncias exatas, mas é capaz de ter sido pouco antes de ingressar no mestrado em história da arte. Lembro-me apenas de tê-lo devorado, com a voracidade de quem junta a fome com a vontade de comer. Os anos passaram. Recomendei o livro para muitos alunos e orientandos. Listei-o em inúmeras bibliografias. Aos poucos, como acontece com os autores que mais nos influenciam, assimilei tão completamente suas ideias que esqueci de onde as havia tirado. Mais do que um texto que eu citasse, Modos de ver se tornou parte do meu modo de ser e de pensar.
Quando John Berger faleceu na semana passada, constatei com surpresa que já não recordava mais quase nenhum detalhe do livro. Afora uma vaga lembrança de peças de publicidade justapostas a quadros famosos da arte europeia e de um mítico ensaio em imagens sem palavras, não conseguia citar uma única frase ou afirmar com certeza que tal ou tal obra constasse do volume. Tive que voltar à fonte para escrever este texto. Descobri, pasmo, que minha dívida com ele é ainda maior do que imaginava. Modos de ver me levou a ler Walter Benjamin e dali para Aby Warburg, Claude Lévi-Strauss, Maurice Merleau-Ponty, Pierre Bourdieu e de volta ao próprio Berger, cuja obra irrequieta abrange poesia, romances, roteiros de cinema e peças de teatro, além dos ensaios de arte que fizeram sua fama mundial. Publicou mais de cinquenta livros, de abrangência e fôlego impressionantes, em pouco mais de meio século de atividade.
Berger não se contentava com pouco. Aliás, pouco se contentava. Ponto final. Mesmo depois de ganhar o maior prêmio literário de seu país e veicular um programa em sua principal rede de televisão, ambos em 1972, continuou a viver em autoexílio da Inglaterra, cujo estilo de vida ele desprezava. Desde seu combativo, e delicioso, primeiro livro de ensaios críticos – Permanent Red, de 1960 –, até o último lançado em 2016, nunca deixou de denunciar a ganância por poder, dinheiro e celebridade que põe em perigo os valores mais essenciais da humanidade. Nunca poupou, tampouco, as manobras de um meio cultural que busca enredar a arte em tramas e discursos capazes de esvaziá-la de seu sentido crítico e alinhá-la com os interesses de quem o controla. Tal procedimento, ele nomeava, em alto e bom som marxista, como ‘mistificação’. Arte, para Berger, era liberdade e luta. Instituições culturais, por melhores que fossem, eram sempre instituições. Mais afeitas à lógica que rege bancos e empresas e ministérios do que aos impulsos questionadores que geram a criação.
Berger era um radical, sem dúvida, no melhor sentido do termo. Sua ação mais contestadora foi falar honestamente sobre arte e imagem, em linguagem acessível, o que logrou fazer em Modos de ver, que antes de ser livro foi uma série de programas na BBC. De repente, num contexto acostumado a ouvir cultura discutida por senhores engravatados, de fala empolada, com palavreado difícil e conceitos filosóficos abstrusos, irrompia na telinha um jovem de cabelos revoltos que falava de frente para a câmera, muitas vezes com close no seu olhar penetrante, gesticulando contra um fundo azul de chroma key. Logo na abertura do primeiro programa, ele se aproxima de um quadro na parede da National Gallery, de Londres – Vênus e Marte, de Botticelli – e usa um estilete para recortar um quadrado correspondente à cabeça pintada de Vênus. A encenação não é bem o que parece. O quadro que ele recortou era uma cópia, claro. O jovem iconoclasta não era tão novo assim (35 anos), e tampouco um outsider ao meio artístico (a essa altura, já atuava como crítico de arte, havia mais de uma década). A vetusta instituição, por sua vez, já não era mais tão tradicionalista – tanto que a cena foi filmada, com a devida autorização, dentro da National Gallery.
Anos depois, numa entrevista, Berger se queixou que a BBC não confiava no programa e, por isso, de início só o veiculou em horário alternativo. Hoje, sem dúvida, nenhuma emissora de televisão desconfiaria. Teria certeza. Jamais um roteiro tão declaradamente incendiário em seus propósitos, tão antagônico aos interesses comerciais de tudo e todos, encontraria espaço em qualquer rede de televisão aberta do mundo, mesmo pública. Naquele momento histórico – auge da aliança entre imprensa e movimentos progressistas que levou à queda do presidente Nixon e ao fim da Guerra do Vietnã – Berger e seus companheiros de produção mal podiam imaginar o quanto esse equilíbrio de forças seria transformado nas décadas seguintes. Ao contrário, viam na televisão um instrumento para atacar o establishment corporativo e estatal que o livro identifica como o novo foco de poder das classes dirigentes.
Modos de ver causou rebuliço por conta de suas posições políticas. O capítulo em que Berger analisa a pintura de nus foi um dos primeiros textos a adotar uma perspectiva feminista para discutir questões de história da arte. Outro capítulo, sobre a relação entre pintura e posse e colecionismo, aborda a materialidade da arte como mercadoria, sujeitando quadros de Holbein, Ruisdael e Gainsborough, entre outros, a uma análise antropológica. Naquela época, tais procedimentos ainda chocavam as sensibilidades de um público de arte acostumado a olhar para os grandes mestres com uma veneração quase religiosa. O intuito de Berger era desbancar, justamente, essa falsa piedade e aproximar seus leitores dos artistas como são de fato: pessoas inseridas na sociedade, sujeitas às mesmas pressões e circunstâncias que os outros. O alvo declarado de sua fúria era a casta de críticos, curadores e experts que se postam como guardiães dessa pseudo-religião. Sendo ele mesmo um pintor que decidira abandonar a pintura pela crítica, Berger não suportava a presunção com que certas autoridades se arvoram em donos de um artista ou de uma obra. Queria abrir o cenáculo da arte para todos.
Alguns dos posicionamentos políticos em Modos de ver podem soar ultrapassados. Passaram-se quarenta e tantos anos, afinal, e o mundo de hoje é quase irreconhecível para a maioria das pessoas que pertencem à geração de Berger, que morreu com 90 anos completos. A história da arte também mudou, revolucionada nas décadas de 1980 e 1990 por uma geração de estudiosos que teve a oportunidade de ler Modos de ver ou, até mesmo, de assistir à série na televisão quando eram jovens. Em seu sentido maior, no entanto, o livro continua não somente atual como também afiado. Para vergonha e tristeza nossa, ainda não avançamos em diversas frentes abertas por Berger em 1972. Em outras, chegamos a regredir. Um aspecto especialmente cativante para quem estuda imagens é o modo sem cerimônia como o livro compara obras de arte consagradas a peças gráficas ou de publicidade. Passado o boom dos estudos de cultura visual nos anos 1990 e 2000, subsiste ainda uma resistência incompreensível a esse tipo de abordagem em muitos cursos universitários, instituições expositivas e mesmo editoras.
O esnobismo de quem quer manter a arte como foro privilegiado de especialistas e iniciados, apartada da vida como ela é, tem se mostrado recalcitrante. Faríamos bem em atentar para as palavras com que Berger conclui o primeiro ensaio de Modos de ver:
A arte do passado não existe mais do mesmo modo. Sua autoridade foi perdida. Em seu lugar, há uma linguagem imagética. O que importa agora é quem usa essa linguagem e para quais propósitos. Isso diz respeito a questões de direito de reprodução das imagens, a quem são os proprietários das editoras de arte, à política global de galerias e museus de arte públicos.
Hoje, claro, deve-se acrescentar que diz respeito também aos meios de comunicação que veiculam a arte como produto e entretenimento. Parece ter ficado para trás, na década de 1970, a responsabilidade de tornar acessíveis os bens culturais, permitindo assim que novas gerações se sintam incluídas nos valores que são patrimônio coletivo. O objetivo de formar o público por meio da televisão – simbolizado pelo sucesso internacional de Modos de ver – foi esquecido na corrida desenfreada pela audiência. O espírito confrontador de Berger nos obriga a perguntar se esse esquecimento é circunstancial ou estratégico.
MAIS JOHN BERGER NO IMS
Pietà, o drama moral de W. Eugene Smith – texto publicado na ZUM 6.