Chegam do Oriente dois filmes que, cada um a seu modo, exploram a natureza da imagem, seus sentidos, seus efeitos: o japonês Esplendor, de Naomi Kawase, e o coreano A câmera de Claire, de Hong Sang-soo.
No começo de Esplendor, presenciamos, por meio de uma câmera na mão quase grudada na nuca do personagem, a chegada de um homem a uma sala de cinema, onde ele se senta e coloca um fone de ouvido. Esta imagem só ganhará pleno sentido no final, quase duas horas depois.
Corta para uma salinha em que um filme é exibido num telão enquanto uma moça, Misako (Ayame Misaki), descreve cada cena em detalhes. É um teste de audiodescrição realizado com um punhado de cegos ou quase cegos, que a seguir comentam o que sentiram, o que imaginaram, o que acham que ficou faltando etc. Entre eles está um homem de meia-idade particularmente crítico do trabalho da moça, a quem ele acusa de projetar na imagem sentidos e emoções que são mais dela do que do filme.
Imagem e subjetividade
Logo saberemos que esse homem, Nakamori (Masatoshi Nagase), é um fotógrafo profissional amargurado por estar perdendo progressivamente a visão. A partir daí, Esplendor se desenvolve quase como dois filmes sobrepostos: um deles é o drama sentimental que envolve o maduro e melancólico Nakamori e a doce e frágil Misako; o outro é uma rica reflexão sobe a imagem, sobretudo a imagem cinematográfica, em suas esquivas relações com a subjetividade de quem a produz e de quem a contempla.
Já nos primeiros testes de audiodescrição ficam claros dois fatos: cada imagem (cada plano cinematográfico, cada fotograma) é inesgotável, de tal maneira que nenhuma descrição verbal pode ter a pretensão de traduzi-la plenamente; o ato de ver não é apenas passivo, mas também ativo, afetivo, volitivo, impregnando a imagem vista com os pensamentos, pulsões e sentimentos de quem observa. É um movimento de mão dupla. Duas pessoas nunca veem exatamente a mesma coisa.
A vertente de Esplendor que desenvolve essa questão, e que inclui uma consulta de Misako ao diretor do filme audiodescrito, é, sem dúvida, a mais fecunda e interessante. Entrelaçado com ela, o drama pessoal dos personagens soa quase como uma concessão ao sentimentalismo, não raro resvalando para o lugar-comum.
Há pontos interessantes de contato entre uma coisa e outra: nos planos que buscam reproduzir a visão limitada de Nakamori, por exemplo, ou na imagem recorrente do crepúsculo, signo da passagem inexorável do tempo, momento em que a luz alcança seu ápice de beleza antes de desaparecer. Mas, por força da redundância, Naomi Kawase, cineasta que costuma trafegar no limite entre o poético e o meloso, acaba por transgredir essa fronteira, resvalando no clichê visual ao diluir várias imagens numa vaporosa contraluz dourada. “Embelezar” um pôr do sol é o mesmo que poetizar o poema, ou perfumar a flor, como diria João Cabral de Melo Neto.
A câmera de Claire
Também o filme de Hong Sang-soo trata de relações afetivas mediadas pela imagem, mas sua abordagem é comparativamente quase ascética em seu despojamento audiovisual, em sua ausência de ênfase e de sentimentalismo.
A narrativa se concentra em um ou dois dias durante um festival de Cannes, mas que ninguém espere glamour, tapete vermelho, celebridades. A ambientação é nas ruelas, cafés e becos da cidade. Os personagens são membros da equipe de um filme coreano que será exibido no evento: o diretor cinquentão (Jung Jin-young), sua assistente e amante (Chang Mi-hee) e, principalmente, a jovem Jeon Manhee (Kim Min-hee), funcionária que acaba de ser despedida – por ter ido para a cama com o volúvel e alcoólatra diretor, ao que parece.
Esse triângulo profissional-amoroso é desvendado aos poucos, em grande parte pela entrada em cena de uma personagem externa, a solitária e meio avoada turista francesa Claire (Isabelle Huppert), que a tudo fotografa com sua câmera polaroide. O quebra-cabeças das relações é construído de forma descontínua, com uma temporalidade embaralhada, em longos planos, com movimentos suaves de câmera e um ou outro zoom lento, e diálogos nos quais os personagens parecem expressar ao mesmo tempo mais e menos do que dizem suas palavras.
As fotos tiradas candidamente por Claire acabam por revelar aspectos dos personagens e suscitar reações inesperadas, realizando na prática uma frase dita pela fotógrafa amadora: nenhuma pessoa é a mesma depois de ser fotografada. O detalhe significativo é que, com exceção de uma ou duas, as fotos feitas por Claire nunca nos são mostradas. Só presenciamos o efeito que provocam nos que as veem.
Rigor e improviso
Essa recusa sistemática do contracampo, que produz em nós, espectadores, um desejo não saciado, um sentimento ao mesmo tempo frustrante e fecundo, pois nos força a pensar e a imaginar, é uma marca do estilo de Hong Sang-soo. O cineasta sul-coreano é um prodígio: num único ano (2017) realizou três longas-metragens notáveis: Na praia à noite sozinha, O dia depois e este A câmera de Claire, todos protagonizados pela bela Kim Min-hee, sua musa e namorada ou ex-namorada, o que acrescenta uma camada de autoironia aos filmes feitos pelos dois.
Desta vez, a façanha maior está em conciliar o rigor formal (a precisão dos enquadramentos, a cadência da montagem, a expressividade dos diálogos) com um ar de alegre despreocupação e improviso que deve muito à leveza da atuação de Isabelle Huppert, talvez a maior atriz de nosso tempo.