Nós, os americanos

Colunistas

21.09.16

Embora esteja em cartaz desde 2013, e apesar de ser de imensa qualidade como série dramática, este foi o primeiro ano em que The Americans concorreu ao Emmy (e, como esperado,  perdeu para a incensada Game of Thrones). O sucesso trouxe as três primeiras temporadas (2013, 2014, 2015) para o Netflix e a estreia me levou a uma maratona de 36 horas de episódios vistos em aproximadamente 20 dias, incluindo a temporada de 2016, esta disponível apenas em sites norte-americanos. Comecei a ver The Americans por indicação de um amigo, e logo me apaixonei pela combinação entre drama psicológico, contexto histórico, suspense e espionagem. Tramas de espionagem sempre me seduziram e sou capaz de suportar inúmeras patriotadas norte-americanas em nome de um bom suspense. Homeland, por exemplo, apesar de todo o seu discurso em defesa da pátria americana, tem uma carga dramática excepcional em função de Carrie (a premiada Claire Danes), a protagonista agente da CIA, ser diagnosticada como bipolar e colocar a sua disfunção em função do trabalho de inteligência.

Para mim, este o ponto é o mais interessante em The Americans: seus espiões carregam dilemas com os quais também nos confrontamos. Como viver uma vida autêntica, quem eu sou, até que ponto a nacionalidade, a ideologia, o gênero ou mesmo a profissão me define e identifica? A série leva esse título por mostrar a vida comum de um casal de americanos, Philip (Matthew Rhyse) e Elizabeth (Keri Russell), pais de dois filhos, proprietários de uma pequena agência de viagem. Moram numa casa de subúrbio, levam as crianças na escola, fazem panquecas no café da manhã e estão em dia com todas as suas obrigações normais. Por trás desse cotidiano perfeito está um casal de espiões soviéticos operando contra os EUA, no que ainda restava da guerra fria nos anos 1980, durante os dois mandatos de Ronald Reagan (1981/1989).

Para dar maior densidade à trama, seu criador, Joseph Weisberg, encontrou uma solução improvável. No primeiro episódio, Philip e Elizabeth vão cumprir o ritual de levar uma torta para os vizinhos que acabaram de chegar e descobrem em Stan Beeman (Noah Emmerich), o morador da casa ao lado, um especialista em contraespionagem do FBI, cuja vida deveria ser perfeita – afinal, ele, a mulher e os filhos são os “verdadeiros” americanos – e, no entanto, desmorona a cada episódio.

No jogo de espionagem e contraespionagem posto em cena, um dos principais dilemas é até onde mobilizar afetos em função do trabalho, da informação e, em última análise, da pátria. Na minha perspectiva, é esta a razão para que a quarta temporada de The Americans tenha levado a série a disputar o Emmy. Este ano, o problema do casal soviético passou a ser a exigência de incluir Paige (Holly Taylor), a filha mais velha no sistema de espionagem. O argumento é decisivo: como americana, ela passaria por triagens difíceis de serem enfrentadas por seus pais e poderia vir a trabalhar para o FBI ou para a CIA, sempre a serviço dos soviéticos. Mas Paige não apenas desconhece as atividades dos pais como, por ser americana, estaria diante de um dilema de a que pátria servir. Seus pais se dividem em posições antagônicas radicais e provocam o espectador a tomar partido. Claro que para a maioria do público norte-americano, Paige deveria encarnar a lealdade à pátria. O problema é que, a seguir esse imperativo, precisará romper com sua obrigação com a família, decisão moralmente questionável. Se escolher servir aos pais soviéticos, a exigência será oposta, e deverá romper com o país em que nasceu.

Importante observar que não há nenhuma profissão religiosa em jogo. Embora o dilema apresentado em The Americans seja muito atual, está afastado do debate sobre conversões de fé e expansão de crenças orientais nos EUA ou mesmo na Europa. No entanto, a quarta temporada concorreu ao Emmy trazendo também um elemento histórico – a guerra do Afeganistão –, onde estavam em confronto norte-americanos e soviéticos e de onde saíram as forças terroristas dos ataques dos anos 1990 em diante, incluindo o 11 de setembro.

Contribui intensamente para o caráter dramático a quase inexistência de recursos tecnológicos. Espionagem feita “mano a mano”, a ponto de produzir, por exemplo, um falso casamento de um agente com a secretária do chefe do escritório do FBI. Não há invenções mirabolantes, hackers, superconexões, e só na quarta temporada se começa a falar em Arpanet e os primeiros computadores estão chegando na sede do bureau. Foi no cara a cara, nos disfarces, nas infiltrações nas vidas alheias, nas relações afetivas mobilizadas em nome da ideologia que The Americans me conquistou.

Como é comum acontecer nas séries, os personagens vão ganhando densidade conforme o espectador vai convivendo com eles, de modo a se tornarem familiares e mais convincentes conforme o tempo. Quando se vê tudo de uma vez só, é como se aquele processo de amadurecimento fosse colapsado no tempo, tornando o bom drama ainda mais intenso. Decisões sobre até onde ir com uma fonte, envolvimentos amorosos misturados a interesses políticos, a relação com os amigos e os filhos, tudo isso aparece de modo particularmente rico e sofrido. Ao contrário do casal cínico de House of Cards, os protagonistas de The Americans expõem dúvidas, dilemas, carências, amores, tristezas. Querem – e sabem que não podem ter – uma vida autêntica. Com isso, fazem pensar sobre quem, afinal, pode. Há um drama convincente, apesar das por vezes rocambolescas tramas de espionagem, porque Philip e Elizabeth levam ao limite a nossa experiência cotidiana: a diferença entre necessidade e desejo, o espaço entre o imperativo categórico e o apelo inexorável do desejo. A quem servir, afinal, é a pergunta do casal soviético. E não apenas deles.

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