Halder Gomes, diretor de Os parças

Halder Gomes, diretor de Os parças

Notícias de um ano particular

No cinema

22.12.17

Do ponto de vista do público, não foi um ano dos mais memoráveis para o cinema. No Brasil e, segundo informações preliminares, também na Europa, a frequência às salas de cinema diminuiu, em grande medida por conta da concorrência do Netflix e de outras plataformas de exibição on demand.

Não disponho dos dados, e muito menos da competência, para analisar tendências de mercado. Por isso, nesta última coluna do ano, vou me limitar a comentar alguns fenômenos que me chamaram a atenção e a destacar alguns filmes marcantes.

Deslocamento do olhar

No cinema norte-americano, que bem ou mal segue sendo referência no mundo, o fato mais animador foi a afirmação, tanto no mercado como na repercussão crítica, de uma filmografia plural, heterogênea, realizada por cineastas negros, com destaque para Corra! (Jordan Peele), Moonlight (Barry Jenkins) e Eu não sou seu negro (Raoul Peck). É a renovação (ou subversão) de gêneros tradicionais (suspense, comédia, melodrama, documentário) mediante um deslocamento do olhar, ou do “lugar de fala”, expressão que se tornou moeda corrente em textos críticos e debates ao longo do ano.

No Brasil verificou-se um movimento análogo, talvez de corte não tanto racial como social – mas as duas coisas estão fortemente interligadas –, com o florescimento, longamente fermentado, do que chamei de cinema proletário, por enquanto ainda restrito basicamente ao circuito dos festivais.

Longas como Era uma vez Brasília (Adirley Queirós), Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans), O nó do diabo (Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi), Baronesa (Juliana Antunes), Sem raiz (Renan Rovida), Corpo elétrico (Marcelo Caetano) e Café com canela (Glenda Nicácio e Ary Rosa), além de uma miríade de curtas realizados por coletivos pelo Brasil afora, configuram a emergência de novos olhares, temáticas, personagens e cenários num cinema que até poucas décadas atrás era um feudo quase inexpugnável de realizadores brancos (em geral homens) de classe média ou elite. As exceções (José Mojica, Ozualdo Candeias, Affonso Brazza) contavam-se nos dedos. Ainda é pouco, mas é uma tendência forte e, ao que parece, irreversível.

Movidos pelo entusiasmo, alguns afoitos chegaram a decretar o fim do cinema “branco-burguês” e o início de uma nova era. Claro que as coisas não se passam assim, e é bom que não se passem. Queremos ver ainda muitos filmes de Beto Brant, Helena Ignez, Anna Muylaert, Julia (e Lucia) Murat, Kleber Mendonça Filho, Jorge Furtado, Lirio Ferreira, Tata Amaral, Fellipe Barbosa, Juliana Rojas, Marco Dutra, Walter e João Moreira Salles e uma infinidade de etc.

Há espaço para todos. Ou deveria haver: um dado preocupante, por exemplo, é saber que um filme de alta qualidade e ótima repercussão em festivais internacionais, como Gabriel e a montanha, de Fellipe Barbosa, teve mais público na França (60 mil ingressos vendidos) do que no Brasil (onde mal chegou aos 40 mil). E que Vazante, de Daniela Thomas, mesmo com todo o alvoroço ao seu redor, não chegou aos 10 mil espectadores.

Humor popular

Duas últimas observações antes de listar os filmes que mais me agradaram no ano, entre os lançados no circuito.

A primeira é que, do ponto de vista da linguagem cinematográfica, algumas das experiências mais vigorosas e ousadas vieram de veteranos como Luiz Rosemberg Filho (Guerra do Paraguay), Helena Ignez (A moça do calendário) e Julio Bressane (Beduíno).

A segunda observação é o sucesso da comédia Os parças, do cearense Halder Gomes, que está batendo a marca do milhão de espectadores. Trata-se, a meu ver, da atualização de um cinema de humor autenticamente popular, que tem origem nas chanchadas e passa por Mazzaropi e pelos Trapalhões. Ao contrário das assim chamadas globochanchadas, que em geral refletem uma mentalidade colonizada de classe média, com tudo o que isso implica de preconceito ou condescendência em relação aos pobres e excluídos, aqui são os marginalizados que vão à forra, apossando-se sem cerimônia da cidade (São Paulo), da história e da tela do cinema. Pensando bem, é a notícia mais animadora – talvez a única – deste final de um ano esquisito.

E aqui a minha lista pessoal, sem ordem de preferência, lembrando que só constam nela filmes exibidos comercialmente nos cinemas:

Corra!, de Jordan Peele.

O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues.

Guerra do Paraguay, de Luiz Rosemberg Filho.

Toni Erdmann, de Maren Ade.

Gabriel e a montanha, de Fellipe Barbosa.

Uma mulher fantástica, de Sebastián Lelio.

No intenso agora, de João Moreira Salles.

Martírio, de Vincent Carelli, Tatiana Almeida e Ernesto de Carvalho.

Na praia à noite sozinha, de Hong Sang-soo.

Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé.

Boas festas a todos e até o ano que vem.

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