O polonês Andrzej Wajda, que morreu aos 90 anos no último dia 9, é talvez o nome mais importante de uma cinematografia fortíssima, que deu ao mundo criadores como Kawalerowicz, Zanussi, Polanski, Zulawski e Kieslowski. Por sorte ou casualidade, seu último filme, Afterimage (2016), sobre um artista dissidente que desafiou os parâmetros do “realismo socialista”, está passando no Festival do Rio, e a Mostra Internacional de São Paulo, que começa no dia 20, programou uma retrospectiva com dezessete títulos do diretor. O próprio Wajda tinha confirmado que viria a São Paulo para receber o Prêmio Humanidade, conferido pela Mostra.
Ainda é possível ver Afterimage em duas sessões do fim de semana: sábado, dia 15, às 21h20, no Reserva Cultural Niterói, e domingo às 15h no Odeon. Na Mostra de São Paulo estarão presentes todos os principais filmes de Wajda, como Cinzas e diamantes, Terra prometida, O homem de mármore, Sem anestesia, Danton e Katyn.
É cinema político por excelência. Não um cinema doutrinário, “de pregação”, mas, pelo contrário, um cinema de questionamento e crítica, de desmascaramento de ideias e imagens de opressão. Há uma coerência básica nessa trajetória artística, por maior que seja a variedade de seus temas e a abrangência (inclusive geográfica) de seu escopo.
Polônia dilacerada
No centro de tudo está a condição dilacerada da Polônia, dividida entre a Alemanha e a Rússia, entre a Europa e a Ásia, historicamente invadida e saqueada por povos e impérios. Como construir dessas ruínas um país? E que país seria esse? Tais perguntas parecem estar embutidas em boa parte da filmografia de Wajda, desde a “trilogia da resistência” antinazista (Geração, Kanal e Cinzas e diamantes, dos anos 1950), passando por O homem de mármore (1977) e O homem de ferro (1981), desconstruções das mentiras do “socialismo real”, e desembocando em Katyn (2007), esse filme extraordinário que mescla o drama pessoal (o pai de Wajda foi um dos milhares de oficiais poloneses executados pelos soviéticos) com a tragédia histórica.
Mesmo quando abordou temas “estrangeiros”, como em Danton (1983) e Os possessos (1988), a preocupação evidente de Wajda era com o seu país. Ambientado nos anos do terror jacobino da Revolução Francesa (1793-94), Danton na verdade discutia veladamente (mas não muito) o confronto entre o líder operário Lech Walesa e o então primeiro-ministro da Polônia, Wojciech Jaruzelski. O primeiro seria análogo ao impetuoso Danton; o segundo, ao implacável Robespierre.
Baseado no romance homônimo de Dostoiévski (também traduzido como Os demônios), com roteiro de Jean-Claude Carrière, Os possessos trata de um tema caro a Wajda, a frágil fronteira entre o idealismo político e o fanatismo. Da utopia ao totalitarismo é um passo, parecem nos advertir esse filme e, de certo modo, toda a filmografia do diretor. Do mesmo elemento são feitos o diamante e as cinzas.
A par das inquietações políticas e filosóficas, Wajda construiu uma linguagem cinematográfica sólida, um realismo robusto pontuado aqui e ali por um grão de loucura, por um toque de humor negro (ou não seria polonês). Um estilo visual que combinava o domínio discreto do enquadramento e da iluminação expressionistas com o uso competente da profundidade de campo do cinema moderno.
Uma sequência-chave de Cinzas e diamantes (1958), com legendas em inglês, pode dar uma ideia da riqueza estética e poética de sua arte. Trata-se de uma cena em que o militante da resistência Maciek (Zbigniew Cybulski, “o James Dean polonês”) conversa nas ruínas de uma igreja bombardeada com a jovem garçonete Krystyna (Ewa Kryzewska) sobre seus dilemas pessoais e sua dificuldade com o amor. É o primeiro dia depois do fim da Segunda Guerra, e o atormentado Maciek tem como missão matar um líder distrital comunista:
O que distingue a abordagem política de Wajda é um olhar caloroso dirigido aos indivíduos, com suas fraquezas e contradições, e um olhar desconfiado diante das grandes ideias, promessas e sistemas. Por isso seu cinema segue mais vivo do que nunca.