Nos últimos anos, quando o nome de Bob Dylan era cotado para o Nobel de Literatura, sempre havia quem protestasse contra a possibilidade de o maior prêmio literário do mundo ser concedido a um compositor. Nesta quinta, a Academia Sueca enfim o reconheceu como criador de “novas expressões poéticas dentro da grande tradição da canção americana”, encerrando uma polêmica que, a rigor, nunca fez sentido. Afinal de contas, Dylan foi aceito como poeta desde o início de sua carreira musical por ninguém menos que Allen Ginsberg.
O autor de “Uivo”, um dos pais do movimento beat que revolucionou a cultura americana na década de 1950, ouviu Dylan pela primeira vez em 1963. A música era “A hard rain’s a-gonna fall”. Ao escutar os versos, uma sucessão avassaladora de imagens de um mundo em desordem ameaçado por um dilúvio bíblico, Ginsberg chorou. “Senti que a tocha tinha sido passada para a geração seguinte”, disse o poeta em entrevista incluída no documentário de Martin Scorsese sobre Dylan, No direction home.
Um registro simbólico dessa relação entre os dois está no célebre clipe de “Subterranean homesick blues”, lançado em 1965, no momento em que Dylan escandalizou os puristas ao trocar o violão pela guitarra elétrica. O vídeo mostra o compositor de 24 anos encarando a câmera com uma expressão entre o desafio e o desdém, enquanto deixa cair cartazes com fragmentos dos versos. Ao fundo, com a inconfundível barba desgrenhada, Ginsberg conversa animadamente com alguém fora de quadro. Para marcar sua posição transformadora na cultura dos anos 1960, Dylan convoca o poeta revolucionário da década anterior.
Na amizade entre Dylan e Ginsberg, o poeta mais velho era mentor mas também aprendiz do mais jovem. O mentor aparece na surreal visita que os dois fizeram ao túmulo de Jack Kerouac, outro padroeiro beat, em 1975. Durante o passeio pelo cemitério de Lowell, cidade natal do autor de Pé na estrada, Ginsberg fala a Dylan sobre transcendência e poesia (“É isso que vai acontecer com você?”, diz, apontando a lápide). Os dois leem trechos de poemas de Kerouac, do livro Mexico City blues, que o compositor cita como uma de suas grandes influências. O momento foi captado no filme Reinaldo e Clara, dirigido pelo próprio Dylan, sobre os bastidores de uma turnê sua que teve participação de Ginsberg.
Já o Ginsberg aprendiz se mostra nas várias ocasiões em que confessou seu deslumbramento com a poesia de Dylan. Mais de uma vez, disse que os versos do amigo mudaram sua forma de pensar o próprio ofício. Convidado a assinar o texto de apresentação do disco Desire, de 1976, o poeta descreveu as canções do álbum como “o ápice da poesia-música sonhada nos anos 1950”.
Compositor, músico, cantor e escritor de prosa e poesia, Dylan nunca ligou para fronteiras entre gêneros. Se a história do Nobel também é feita de omissões (como a do próprio Ginsberg), o prêmio desta quinta-feira ilumina a posição singular de Dylan na história da literatura. Sua obra deve tanto à influência decisiva de músicos folk, como Woody Guthrie, quanto ao diálogo criativo com gerações de poetas, dos beats a Rimbaud, de Whalt Whitman a Dylan Thomas, de quem tomou emprestado o pseudônimo. Em um verso irônico da canção “I shall be free no 10”, de 1964, ele já resumia tudo: “I’m a poet and I know it” (“sou um poeta e sei disso”).