Teoria geral do abandono literário

Literatura

13.03.18

Como escritor, é difícil definir quando um devaneio se torna um projeto. Quando uma ideia que ocorre no chuveiro de fato vira algo a ser escrito. E quando escrito, ou projetado, é difícil estabelecer quando se define que é viável. E existe um momento em que o escritor, ao devanear, por mais que queira escrever, decide que não, não é viável. Este momento me interessou.

Saí à procura da teoria do fracasso/sonho/inacabado literário perfeito. Acima de tudo, imaginei que falar com os outros geraria a resposta que eu não tinha, ou não sabia articular. Eu precisava sair da minha própria cabeça, da minha própria resposta. Como os outros autores lidam com seus projetos inacabados?

Aliás, eles têm projetos inacabados?

Por um lado, encontrei escritores que de fato aprenderam algo com seus inacabados e que, sim, saíram ganhando. Encontrei autores que ou fazem ou não fazem. Por outro lado encontrei uma teoria que falhou, e que possivelmente está inacabada.

Comecei por Débora Ferraz, com quem já tinha falado sobre o assunto. Ela me contou de histórias que cobria quando era repórter e que seriam um livro-reportagem muito bom, “coisa para umas trezentas páginas, vários personagens, várias vozes”. Mas não rendiam. Segundo ela, o mero esboço “só serviu pra mostrar como é fácil caricaturizar, exagerar, sair do tom, quando falamos de coisas que não conhecemos realmente.”

Aprender com o inacabado e progredir. Talvez a única solução seja a máxima de Beckett: fail again, fail better. Fracassar de novo, fracassar melhor. Eric Novello, através de projetos inacabados, aprendeu mais sobre o próprio processo criativo. “Tenho lidado com as armadilhas da pesquisa. Enquanto pesquiso a história do Rio de Janeiro anterior à chegada de Cabral, vou adiando indefinidamente a escrita do livro. Um jeito de disfarçar um processo criativo caótico com uma aura de organização.” Inclusive, toda essa procrastinação vale a pena pela expressão “disfarçar um processo criativo caótico com uma aura de organização.”

Os fracasssos parecem estar levando alguém a algum lugar. Por mais que houvesse valor científico nulo em perguntar a uma amostra particular, uma tendência começou a surgir: há autores que aprendem. E há autores que querem sair de seus gêneros. Prosadores queriam escrever poesia. Era meu mundo binário dos sonhos: havia os que aprendem com seus erros e os que sonhavam com gêneros que façam sentido. Ao estender a pergunta a Sheyla Smanioto, ela comentou que seu maior projeto literário não realizado é o de ser poeta. (Mesmo?, conferi. Mesmo.)

Assim como Marcos Peres. Como bom poeta, teve até fases: “Na fase lírica, tentava compor sonetos para amores reprimidos. Na fase rebelde, usava chavões e clichês de músicas, contra capitalismo e oligopólios (sem saber o que diabos era um oligopólio). Na fase épica, decidi que, para ser eternizado no bronze, deveria fazer um poemão calhamaço, no melhor estilo A Divina Comédia. Cheguei até a fazer alguns cantos, interpolando estrofes e mudando palavras para alcançar os versos decassílabos — até perceber que, apesar da forma correta, o conteúdo era terrível.”

(Comecei a ver um padrão.) Encontrei um contista que pensa em romances. É Marcelo Moutinho, vencedor mais recente do Prêmio Clarice Lispector de contos: ”Um projeto em que venho pensando já há algum tempo é o de uma narrativa de tintas ficcionais, mais longa do que a costumeira extensão do conto, baseada na sombra trágica que acompanha a história de minha família: o estigma do atropelamento.”

Cada vez mais eu encontrava evidências. André de Leones me disse que seu projeto irrealizado é “um romance de ficção científica que se passa em um século XX alternativo. Embora já tenha flertado antes com o gênero, algo nesse meu romance parece muito fora do lugar, e não consegui descobrir o quê. Cheguei a terminar uma primeira versão e revisá-la, mas a sensação de que havia nele algo de ‘irreparável’ só aumentou.”

Os que alcançaram poesia, conto e romance querem além. Vide Henrique Rodrigues, cuja “vida é composta por ilhas remotas de realizações cercadas por oceanos quiméricos de toda sorte — ou azar.” Cismou em emplacar um provérbio. “‘Se gogó fosse garantia, sabiá não virava emplastro’. Dediquei-me durante meses a falar essa máxima em diferentes ocasiões, e ao menor estranhamento dizia com toda naturalidade que tinha ouvido em algum lugar, para ver se (perdão) colava. No entanto, logo depois surgiu o tal Salonpas, e o velho emplastro sabiá quase sumiu do mercado. Com ele meu provérbio, prematuro e com potencial de ir longe, também adormeceu nas longas noites do tempo. Vida que segue: quem nasceu pra quilo nunca chega a à la carte.”

Comecei a desenvolver uma teoria redonda, de autores que não se encaixam no gênero, que olham para fora, até beirando o corpóreo, ligada ao conceito de “nascer no gênero errado”. Era linda, linda. Explorava um pouco de Judith Butler de um lado e Borges do outro.

Foi quando dei de cara na primeira parede, chamada Samir Machado de Machado. Um dos autores mais prolíficos da minha geração, cujo próximo livro é uma ficção histórica que mistura Jurassic Park, Indiana Jones e a ditadura militar. Eu contava com Samir, que teria um Jumanji literário, um sonho mais belo e heteróclito possível.

E Samir me respondeu que, em geral, terminava seus projetos. Fim. Segui em queda para o fatality, com Simone Campos. “Tenho dois projetos não terminados: um RPG feminista e um romance de celular (inspirado nos que fazem sucesso no Japão). Mas consegui botar na rua muitos projetos ‘impraticáveis’, por insistência e por encontrar parceiros com garra. Terminei um livro-jogo sobre games (em novojogador.com.br) e estou terminando um quadrinho de ficção científica e fantasia com Amanda Paschoal. Na verdade, só tenho projetos estrambóticos. O fato de só dois terem ‘escapulido’ até hoje me deixa meio pasma.” Conclui (com frustração) que “a chance de um projeto estrambótico dar errado é sempre maior. Mas se você sabe que tem que lutar por ele, já sai de casa determinada e armada até os dentes.”

Tudo parecia perdido, minha proposta desgraçada, meus teóricos dispensados.  Foi quando recebi a última resposta de minha pesquisa. Era Natália Borges Polesso, com três livros pela metade: romance, contos e poesia. Quer ter um espaço de cultura em Caxias do Sul, além de fazer pilates, natação, ioga ou “algo que não faça minha coluna desistir de mim”, projetos que escalam em dificuldade até chegar ao ápice: “ensinar a gata a fazer cocô dentro da caixinha de areia, e não ao redor dela.”

Nada pode ser uma maior perda de tempo que o fracasso. A sociedade ocidental associa “estar ocupado” com produtividade, portanto sucesso, portanto felicidade. Nesse raciocínio, aquilo que não se termina, o fracasso, se torna o zero dentro da multiplicação. Estar ocupado com o fracasso é não ser produtivo, portanto malsucedido, portanto infeliz.

Enfim, pude concluir que deveria ter entrevistado Natália primeiro. Ter feito uma matéria apenas sobre ela, com seus livros premiados e um depoimento do meu próprio ortopedista sobre joelhos que desistem das pessoas (meu caso).  Seria engraçado e falaria de fracassoss. O próximo tem de ser só sobre isso.

Natália, como exemplar Da Vinci dos projetos inacabados, diz que “o grande projeto parece ser sempre aquele do porvir.” (Mas nunca brinque com ligamentos encurtados). Talvez eu tenha alguma resposta em um próximo texto. Ou um insight dois minutos depois da publicação deste. Pelo menos teria aprendido algo.

Antes que digam que só falei deste projeto inacabado: tenho dois livros, escritos, editados, lidos por betas, com revisão ortográfica, prontinhos para seguir adiante, escondidos em uma pasta obscura do computador. Casualmente, meu livro novo (perdão) traz um livro em formato de livro inacabado. Mesmo que completos, seguem incompletos. Talvez todos os projetos sejam assim. Mais do que incompletos, irreparáveis, como disse o André. Assim como esta teoria. Mas os ligamentos do joelho têm melhorado.

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