Vamos chamá-la de Maria

Em processo

10.07.18

Escrevi a primeira versão do livro de um jato. Eu vinha me arrastando há alguns anos num manuscrito que mal saía do lugar quando li uma matéria impressionante sobre uma mulher do Centro-Oeste do Brasil, vítima de tráfico sexual para Portugal. Sob o impacto dessa história, passei um carnaval e uma semana santa no computador, imaginando o entrelaçamento de duas narrativas: as experiências erótico-amorosas de uma mulher de classe média e as noites assustadoras da escravidão sexual dessa personagem que chamo de Maria e que poderia ser qualquer mulher. O texto aguarda a distância do calor da escrita para entrar em fase de revisão. O trecho abaixo é o capítulo que abre o livro.

 

 

Ela

Dava vontade de pular no algodão gigante, de rolar no tapete de nuvem. A janela era igual um olho de boneca. Ela levantou até o final a pálpebra cor de creme. Ninguém tinha avisado que no avião tudo parecia de brinquedo. A comida no pratinho, os talheres em miniatura, os corredores arredondados, os sorrisos de desenho animado. Também não tinham dito que ficava tudo parado, um pássaro de aço mais rápido que o vento e parado.

Por fora, o avião corre desembestado. A brancura dura para sempre. De repente o tapete começa a se esgarçar, e entre os fiapos de nuvem ela vê os contornos de uma cidade. Lisboa.

Gosta do nome Lisboa porque dentro dele tem a palavra “boa”. Lisboa boa. E Lis era lindo; queria ter dado esse nome para a filha: Flor de Lis… Na época da gravidez, a patroa, que era artista, sugeriu o nome Jaqueline, nome estrangeiro, de primeira dama. Nem deu tempo de saber se a menina tinha cara mesmo de Jaqueline. Quando voltou da licença-maternidade, foi informada que não precisariam mais dos seus serviços.

O aeroporto era liso e limpo. Fez tudo direitinho e passou sem problemas pela imigração. Só ficou nervosa quando o homem ficou encarando a foto do passaporte. Não tinha um centavo na carteira, não sabia direito para onde ia ou o que faria. Mas eles estavam cuidando de tudo.

Os portões se abriram. Lá fora, um homem a aguardava. Tinha sobrancelhas grossas e um ar cansado, como se a repetição o irritasse. Hoje é só você, disse, com sotaque. Segurou seu cotovelo e pacientemente a conduziu para fora do aeroporto.

Na janela do carro passava a cidade, igual e diferente. Era a primeira vez dela no exterior. As viagens nos ônibus quentes, cheirando a galinha, tinham ficado para trás. Não mais a poeira seca, o barulho das tralhas no bagageiro, a gritaria misturada. O carro deslizava no silêncio do ar condicionado. O homem pediu seu passaporte para registrar o contrato de trabalho e ela deu. Desceram numa estação de trem. Achou tudo lindo: o teto lá no alto, os painéis gigantes, coloridos. Pena que não deu tempo de aproveitar; logo estava no trem e depois em outro carro.

Está agora em frente a um portão imenso e chique. Era pesado e cheio de voltas. Como se trançado em ferro, aqui e ali desabrochava uma flor ou um fruto mineral. Uma senhora loira a recebeu com um sorriso estranho na boca pintada.  Quer perguntar qual é o trabalho que fará e quando começa, mas é tarde e a mulher fala rápido e embolado. Entende que dormirá no quartinho com outra garota e no dia seguinte receberá as instruções.

Está exausta. Na cama ao lado, pende uma perna morena. Fecha os olhos e sonha com uma cama de nuvens.

No dia seguinte, mandam as meninas descerem. Eram várias saindo dos quartinhos. As novatas, diziam. Ela lava o rosto e se junta à fila de mulheres ainda vestidas com as roupas amarrotadas da viagem, ao encontro do destino.

Pelo menos é assim que imagino.

Vejo a pele negra e as mãos de palmas grossas. Mãos que seguraram enxadas, esfregões, bebês, e agora agarram o corrimão da escada em caracol. Ela olha para o salão, onde passam mulheres de calcinha, os peitos nus balançando.

Vamos chamá-la de Maria.

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