Cena do filme "Zama", de Lucrécia Martel

Kafka no chaco

No cinema

23.10.17

Um dos filmes mais originais e intrigantes da 41ª Mostra de Cinema de São Paulo é certamente Zama, coprodução multinacional (incluindo uma boa parte brasileira) dirigida pela argentina Lucrecia Martel. Baseado no singular romance histórico homônimo publicado em 1956 por Antonio di Benedetto, o filme é ambientado na região pantanosa onde hoje é o Paraguai, no final do século XVIII, isto é, pouco antes das guerras de independência contra a Espanha.

Dizer “romance histórico” é simplificar e falsear as coisas. Trata-se de um antiépico, em que toda a agitação, todo o movimento, parece não levar a parte alguma, numa atmosfera estagnada e angustiante como a de um conto de Kafka ou de uma peça de Beckett.

O centro da narrativa é o personagem-título, o funcionário da coroa espanhola Don Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho), que quer sair da cidade em que está atolado (no livro é Assunção, no filme ela não é nomeada). Ele pede sua transferência, mas uma série de entraves e dificuldades de comunicação com a metrópole adiam indefinidamente sua partida.

Delírio febril

As relações de Zama com as autoridades coloniais, com uma nobre sedutora e devassa (Lola Dueñas), com a população local de índios e escravos africanos, tudo isso é mostrado aos poucos da maneira elíptica, oblíqua e escorregadia característica da diretora de O pântano A menina santa. A certa altura ficamos sabendo que Zama tem um filho com uma índia (no livro é uma mestiça) e que um bandido célebre, Vicuña Porto, aterroriza a região.

Esse Vicuña Porto é quase uma figura mítica. Alguém diz que o matou, e exibe suas orelhas. Será verdade? Cansado de esperar sua transferência, Zama se engaja numa espécie de expedição militar para caçar o bandido e policiar a região.

Mas o próprio protagonista é um personagem ambíguo, claudicante, como um esboço que parece não se completar. Certas elipses e repetições, bem como alguns efeitos sonoros, compõem um clima de pesadelo ou de delírio febril.

A situação colonial, com sua tentativa canhestra de transplantar para a bacia do rio da Prata um arremedo da sociedade ibérica, é apresentada como um terreno pegajoso e movediço, em que nada é o que parece ser. O bandido morto não morreu, as pedras pretensamente preciosas são cristais sem nenhum valor, os serviçais vestem librés engalanadas na parte de cima do corpo mas andam nus da cintura para baixo. Alguma pompa e muita lama, rapapés e violência brutal, projetos grandiosos e estagnação. A colônia é um pântano – físico, moral, espiritual. E de pântano Lucrecia Martel entende.

Acrescenta estranheza e um certo distanciamento irônico o entrecruzamento de línguas (espanhol, guarani, português) e a utilização, na trilha musical, de boleros e guarânias do século XX em arranjo instrumental. Um filme no mínimo desconcertante.

A seguir, breves comentários sobre outros filmes da 41ª Mostra.

Grão

Num futuro não muito distante, em que todos os alimentos são criados sinteticamente e barreiras eletrônicas mantêm os miseráveis fora dos perímetros urbanos, um misterioso distúrbio corrompe a produção de comida. Um cientista (Jean-Marc Barr) aventura-se nas “terras mortas” em busca do homem que talvez tenha a chave para a solução do problema, o pesquisador renegado Cemil (Ermin Bravo), que se converteu numa espécie de profeta anti-industrial. Assim é Grão, do turco Semih Kaplanoglu.

As insólitas paisagens desoladas (boa parte delas na Capadócia), filmadas num preto e branco granulado, o viés metafísico, os longos planos silenciosos, tudo faz pensar inevitavelmente em Tarkovsky. A lembrança do gênio russo não faz O grão passar vergonha, mas denuncia certa diluição de seus temas num misticismo new age. Kaplanoglu ganhou em 2010 o Urso de Prata em Berlim, com Um doce olhar.

Saudade

O pernambucano Paulo Caldas (de Baile perfumado Deserto feliz, entre outros), volta ao documentário (que exercitou em 2000 com O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas), desta vez para rastrear as origens e as reverberações de uma palavra, “saudade”, em três continentes onde a língua portuguesa fincou raízes (Europa, África e América). A poesia visual e musical se alterna com depoimentos diversos de artistas, estudiosos e “pessoas comuns”, compondo um ensaio fascinante sobre a potência multiforme de um vocábulo singular. Talvez o melhor filme do diretor.

Açúcar

Também de Pernambuco vem o curioso Açúcar, de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira. Em contraste com longa-metragem de estreia da diretora, Amor, plástico e barulho, que retratava de modo quase documental a efervescência da música brega recifense, o ambiente agora é um engenho decadente de cana na zona da mata pernambucana, para onde a jovem herdeira da propriedade (Maeve Jinkings) retorna com pretensões de revitalização econômica, mas esbarra na oposição dos antigos empregados, agora donos de uma parte do terreno e empenhados num projeto de valorização de sua cultura afro-brasileira.

O tema, recorrente no cinema pernambucano, da persistência de estruturas ancestrais de dominação no seio da modernidade, recebe em Açúcar um tratamento quase alegórico, de resultados irregulares, mas com uma composição visual apurada e momentos de alta inspiração, a começar da própria sequência inicial, em que uma jangada com a vela vermelha singra um ondulante canavial como se estivesse no mar.

O jovem Karl Marx

Depois do belíssimo documentário Eu não sou seu negro, o haitiano Raoul Peck muda de tema, gênero e registro com essa reconstituição ficcional dos anos de juventude de Marx e de sua amizade com Friedrich Engels nos anos 1840, quando eles forjaram as bases do chamado “socialismo científico” e semearam o movimento comunista internacional.

O filme não escapa da armadilha mais frequente das cinebiografias de homens célebres, que, com o intuito de humanizá-los, acaba por transformá-los em personagens de melodramas “de superação”, com os clichês correspondentes de caracterização psicológica e linguagem narrativa. Quando se dedica à descrição do sistema de exploração estudado por Marx e Engels e acompanha a elaboração paulatina de seu pensamento crítico, O jovem Karl Marx ganha consistência e vibração, como na última sequência, da escrita do célebre Manifesto comunista.

Já nos créditos finais, imagens documentais de momentos cruciais da história social e política dos séculos XX e XXI, ao som de Like a rolling stone, de Bob Dylan, buscam ressaltar a reverberação duradoura das potentes palavras do Manifesto, a mostrar que o mundo mudou muito, mas certas feridas continuam dolorosamente abertas.

, , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , ,