Fazia tempo que eu não passava algumas horas por dia com o Edgar Wilson, personagem que está presente na maioria dos meus livros. Ele sempre volta e eu sempre o conheço um pouco melhor. Eu queria falar sobre homens e animais, assunto recorrente para mim. Mas dessa vez eles estão mortos e eu só poderia falar de algo assim seguindo os passos dele, de Edgar Wilson, porque ele ampara todo o meu assombro. O romance sai em março pela Companhia das Letras.
O imenso moedor está triturando animais mortos recolhidos nas estradas. Tanto o barulho do motor quanto o dos ossos sendo esmagados ricocheteiam nas paredes altas do galpão. A mistura de som e fedor enfurece os sentidos. Edgar Wilson deixa o carrinho no lugar delimitado por um retângulo pintado no chão e sobe os degraus de uma escadinha de alumínio que dá acesso à caçamba do moedor, de onde é possível ver o lado de dentro.
— Consegue ver o que é? — grita um funcionário, afastando o protetor auditivo.
— Não estou vendo nada — grita de volta Edgar Wilson.
— Desde cedo tá assim… agarrando.
— Mas não estou vendo nada. Desliga.
O homem faz um gesto de derrota e, consternado, vai até a manivela de segurança e a puxa com força. A frenagem ríspida provoca um cheiro de queimado nas engrenagens.
— Me dá aquela vassoura ali — aponta Edgar Wilson.
Cutuca com força um dos dentes do triturador e remove o que estava causando o mau funcionamento da máquina: o osso de uma costela.
— Triturou algum animal grande?
— Uma vaca.
— Então é isso. — Edgar Wilson suspende com a ponta do cabo de vassoura o osso da costela ainda preso no pouco que restou da coluna vertebral do animal e, com um movimento suave, gira-a até que esteja fora do tanque do triturador e a joga no chão. O funcionário olha para baixo, próximo de seus pés, conferindo o que estava causando o problema na máquina. Ele se abaixa e pega o pedaço de osso. Verifica-o com atenção.
— É mesmo uma costela.
Joga o pedaço num tonel e torna a ligar a máquina, sentindo-se mais aliviado. Edgar desce da escadinha ao perceber que o moedor funciona com menos ruído e sem nenhum solavanco.
— Para os grandes você precisa trocar a peça. — Edgar Wilson aponta para o canto do galpão, onde uma peça semelhante à usada no interior do moedor, porém maior, está apoiada contra a parede.
— O Estevão disse pra moer rápido e que não precisava trocar.
— Não dá pra usar a mesma peça numa vaca e numa capivara. Você tem que trocar. Deixa os grandes pro final. Mói os menores primeiro.
O homem, funcionário contratado há poucas semanas, faz sinal de que entendeu e volta a atenção ao trabalho.
Antes de sair do galpão em direção ao refeitório, Edgar Wilson verifica mais uma vez o funcionamento das engrenagens ao lançar um cachorro morto dentro do moedor, que permanece continuamente em movimento. A mordedura da máquina não provoca solavancos ou atritos impróprios. Do outro lado, por um cano largo, a massa condensada vai sendo despejada numa espécie de reservatório para ser utilizada na preparação de compostagem usada na fertilização do solo.
Edgar seca as mãos contra os bolsos do macacão. Apanha uma bandeja com um prato, talhares e um copo descartável e entra na fila do refeitório seguido por homens famintos e barulhentos. Há dois horários para o almoço: ao meio-dia e à uma hora. Edgar almoça no segundo horário, quando a fila é um pouco menor e há mais assentos disponíveis. Depois de ser servido, encontra um lugar perto da janela e se acomoda.
O homem à sua frente come ruidosamente estalando a língua vez ou outra. Ora mastiga, ora fala, mal dando tempo para respirar. Trabalha há duas décadas removendo animais mortos em estradas, residências e fazendo hora extra aos sábados no triturador.
— Semana passada resgatamos uma égua, mas foi bem complicado. Ela tava pastando ao lado de um barranco, com uma corda no pescoço e amarrada numa árvore. Mas ela escorregou e ficou suspensa pelo pescoço. Quanto mais se debatia, mais a corda ia esmagando o pescoço dela. Acionaram a minha unidade e quando cheguei ela tava quase morta. Cortei a corda, ela caiu na estrada, enfim, foi uma merda jogar ela na caminhonete. Mas sobreviveu.
O homem dá uma colherada no meio do prato e com a ajuda do polegar ajeita a comida antes de levá-la a boca. Mastiga rapidamente e continua:
— Aí, quando cheguei aqui com a égua viva na caçamba, me chamaram a atenção porque a gente só recolhe animal morto. Mas eu ia deixar a porra da égua lá na estrada? O dono não tava lá. Eu sabia que era questão de tempo até um motorista se arrebentar nela. Disseram que a burocracia não permitia e que a gente não pode manter um animal vivo aqui. Eu voltei lá e soltei a égua perto do barranco, mas não amarrei porque ela ia acabar se enforcando de novo. Duas horas depois, fui lá recolher os pedaços da filha da puta. Uma Kombi pegou ela bem no meio. O motorista morreu. Precisei levar mais um ajudante comigo porque era mesmo uma égua das grandes. A estrada ficou interditada por quase três horas.
— Ela estava prenha — diz Edgar Wilson. — Fui eu que coloquei ela no moedor. Precisei da retroescavadeira pra suspender. A cabeça do potrinho tava até saindo. O dono veio aqui reclamar a égua dele.
O homem para de mastigar por fim e bebe o restante do refresco de caju em seu copo. Aguarda curioso que Edgar conclua.
— E o que ele queria? — pergunta outro homem que somente escutava a conversa.
— Ele queria a égua, só que eu já tinha moído metade. Ele criou confusão. O gerente deixou ele entrar no galpão e pediu pra eu parar de moer. Acho que era uma égua de estimação. O sujeito acabou desmaiando .
— O filho da puta deixa a égua prenha pastando num barranco com uma corda no pescoço. Depois vem aqui reclamar como se a gente tivesse culpa — diz o homem, que volta a mastigar ruidosamente.
— O que vocês fizeram com o sujeito? — pergunta o homem que escutava mais do que falava.
— Joguei água na cara dele e entreguei a outra metade da égua, a parte que eu ainda não tinha jogado no moedor, e ele levou embora numa carroça.
— E com a metade, o que será que ele fez ?
— Acho que um funeral — conclui Edgar Wilson, levando à boca a última colherada do seu almoço. Apanha o seu copo de refresco de caju e sai do refeitório aproveitando sozinho seus últimos minutos de folga fumando um cigarro sentado numa pedra atrás de um arbusto que parcialmente esconde seu corpo em meio à vegetação que se espalha nos fundos do depósito.