As boas maneiras, ganhador do prêmio especial do júri no festival de Locarno e um dos filmes mais aguardados da 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, leva adiante, por um lado, a exploração das fronteiras porosas entre vários gêneros (sobretudo o horror, mas também o musical, a comédia, o drama social) empreendida por seus jovens diretores, Marco Dutra e Juliana Rojas.
Juntos, os dois já haviam feito Trabalhar cansa; separados, fizeram Sinfonia da necrópole (Juliana), Quando eu era vivo e O silêncio do céu (Marco). Assim, As boas maneiraspode ser visto como uma nova etapa desse work in progress da dupla.
Por outro lado, ao abraçar de modo mais atrevido o horror explícito, atualizando o mito do lobisomem, o novo filme se insere numa vertente recente do cinema brasileiro que imbrica os códigos do gênero com uma reflexão, direta ou oblíqua, sobre a nossa formação social: O diabo mora aqui (Rodrigo Gasparini e Dante Vescio), O nó do diabo (Ramon Porto Mota, Jhésus Tribuzi, Ian Abé e Gabriel Martins) e mesmo Através da sombra, do veterano Walter Lima Jr. Talvez alguns cineastas estejam concluindo que o terror é mais apto que o realismo ou a alegoria para expressar a realidade em que estamos atolados.
Aqui, a protagonista é uma enfermeira negra, Clara (a extraordinária Isabél Zuaa), que se emprega como faz-tudo doméstica de Ana (Marjorie Estiano) uma moça branca rica, solitária e em estágio final de gravidez. Desde o início há algo estranho nessa gestação, no comportamento de Ana, em sua relação com o passado. A tensão cresce na mesma medida em que se aprofunda a relação (inclusive erótica) entre essas duas mulheres tão diferentes. O nascimento da criança marcará a ruptura radical, tanto na trajetória das personagens como na forma do filme: seu gênero, seu estilo, sua poética.
É impossível antecipar mais alguma coisa do enredo sem estragar as surpresas que estão por vir. Basta dizer que o filme não recua diante dos riscos estéticos da licantropia e do horror gore, com tudo o que isso implica de sangue, vísceras e efeitos especiais. De Jacques Tourneur passamos a David Cronenberg e ao John Landis de Lobisomem americano em Londres.
Espaço de fantasia
Mas o prodígio maior de As boas maneiras é o de enfrentar o terror sem perder de vista o amor e o humor. Hitchcock dizia que o problema não era o clichê, mas sim partir de uma ideia original e desembocar num clichê. Ele próprio fazia o contrário, partia do clichê para algo original, e é isso o que encontramos também neste filme.
Um exemplo é a personagem de Ana, a jovem grávida. De início, ela é a típica representante de uma certa elite de origem rural, com muito dinheiro e nenhum refinamento, com sua horrenda música sertaneja, seu mau gosto decorativo, seu consumismo acrítico, seus hábitos de sinhazinha. Esboça-se um confronto de classe entre ela e a altiva Clara. Mas aos poucos a relação se matiza e problematiza, surge um afeto mais complexo, as tensões se deslocam para outros lugares.
A criação de um espaço de fantasia, em que a observação da realidade cotidiana é apenas mais um elemento da composição, está presente desde o início, na maneira como a cidade é retratada, com o skyline urbano pintado discretamente ao fundo. É São Paulo e ao mesmo tempo não é. É o território imaginário construído por Juliana Rojas e Marco Dutra, por onde passam sonhos e pesadelos moldados por décadas de cinema, séculos de literatura. Sem deixar de ser, entretanto, este país real, dilacerado e absurdo, em que nos movemos todos os dias.
The square
Outro destaque da mostra paulistana, o sueco The square, de Ruben Östlund, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, é um belo ensaio quase tragicômico em torno das vicissitudes da solidariedade humana no mundo de hoje, e do papel ambíguo da arte no enfrentamento dessa questão.
O protagonista, Christian (Claes Bang), bem-sucedido curador de um grande museu de arte contemporânea de Estocolmo, é lançado numa crise pessoal e profissional enquanto prepara a instalação e a promoção de um projeto conceitual de uma artista argentina, The square, uma experiência sobre confiança e afeto entre pessoas que não se conhecem.
A habilidade do filme consiste em fazer da vida pessoal de Christian quase um laboratório de testes das questões levantadas na obra da artista. Vítima de um golpe urbano típico, ele tem o celular e a carteira furtados num calçadão da metrópole e acaba tendo que lidar com moradores da periferia que ele desconhece e teme. Temer o outro, vê-lo sempre como ameaça potencial, parece ser o sentimento prevalecente. A tal ponto que, ao fazer sexo com uma jornalista americana que acabou de conhecer, Christian entra em paranoia achando que ela fará um uso escuso da camisinha em que seu esperma ficou armazenado.
Nas bordas do drama do protagonista, The square retrata com ironia implacável e humor ocasionalmente negro temas como as relações entre arte, mercado e propaganda, a internet como instrumento de criação e destruição, o caráter utilitário e instável dos vínculos interpessoais etc. No todo, o que fica é a imagem de uma crosta muito fina de refinamento e boas intenções, por cujas rachaduras ameaça emergir a todo momento (e eventualmente emerge mesmo) a barbárie mais brutal.
Antonio 1, 2, 3
Na ótima safra de filmes brasileiros presentes na 41ª Mostra, merece uma atenção especial o surpreendente longa-metragem de estreia do jovem cearense Leonardo Mouramateus, António um dois três, filmado em Lisboa. O António do título (Mauro Soares) é um rapaz português que abandona a faculdade, foge da casa do pai e busca abrigo na casa da ex-namorada, onde conhece uma brasileira (Deborah Viegas), que está de passagem, a caminho de Moscou.
Mas espere, isso é apenas o começo, ou um dos começos. Ao longo do filme, narrado com uma fluência e uma graça notáveis, serão embaralhadas as posições desses personagens, e de outros surgidos no caminho. De uma evocação do amor juvenil à la Truffaut passamos a um jogo narrativo à beira do metalinguístico que lembra as construções labirínticas de um Alain Resnais.
Mouramateus brinca o tempo todo com a expectativa do espectador, puxando o tapete das certezas, desfazendo a trama que acabou de tecer, recompondo-a com os mesmos fios, mas outros desenhos. Cinema do transitório, dos sentimentos efêmeros, da abertura a todos os possíveis. Difícil pensar numa estreia mais animadora.
24 frames
Outra reflexão “em ato” sobre o cinema e suas possibilidades é o último longa-metragem do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016), 24 frames, cujo título se refere aos 24 fragmentos que o compõem, feitos a partir de imagens fixas, mas também à própria natureza do cinema, essa ilusão de movimento criada pela sucessão de imagens fixas a 24 quadros (frames) por segundo.
Todos os segmentos começam com um quadro estático (o primeiro, salvo engano, é a pintura de Brueghel “Os caçadores na neve; os outros são fotos tiradas pelo próprio Kiarostami) que aos poucos vai ganhando vida, graças à movimentação de alguns de seus elementos (folhagem, animais, rio, mar). A câmera não se movimenta (salvo uma vez, em que está na janela de um carro), a figura humana quase não aparece, não há diálogo algum. Apenas música e ruídos. Ocasionalmente, uma figura exterior invade ou cruza o quadro: um cachorro, um barco, uma motocicleta.
Por vezes a ação se resume às intempéries (chuva, vento, neve, relâmpagos) e às variações de luz, de foco, de profundidade de campo. Há enquadramentos dentro do enquadramento (janelas, vãos de portas, espaço entre troncos de árvores etc.) que multiplicam a direção e as camadas do olhar. É impressionante a gama de atmosferas e de possibilidades dramáticas sugeridas a partir desses elementos mínimos. Aos 76 anos, e com uma grandiosa obra no currículo, Kiarostami ainda mostrava um frescor e uma inquietação criativa de fazer inveja a qualquer jovem iniciante.