Todo leitor dedicado tem seus autores de estimação, aqueles que acompanha, que busca ler na íntegra. No caso de escritores ainda vivos e produtivos, isso envolve a expectativa pelo surgimento de novos títulos. No meu caso, o italiano Roberto Calasso é, sem dúvida, um autor de estimação. Calasso, nascido em 1941 e desde 1962 trabalhando como editor na Adelphi, escreveu ao longo das últimas décadas ensaios sobre os mais variados assuntos: A ruína de Kasch, de 1983, sobre Talleyrand e a França de sua época; As núpcias de Cadmo e Harmonia, de 1988, sobre mitologia grega; K., de 2002, sobre Franz Kafka; O rosa Tiepolo, de 2006, sobre o pintor veneziano do século XVIII, e muitos outros.
Mais do que o conteúdo, o que impressiona nos livros de Calasso é o estilo e a forma utilizada para apresentar as ideias. Ele divide seu último livro, L’innominabile attuale, lançado na Itália em julho de 2017 (e ainda inédito no Brasil), em três partes: “Turistas e terroristas”, “A Sociedade Vienense de Gás” e “Avistamento das Torres”. As duas primeiras partes regulam de extensão (70, 80 páginas), mas a terceira é brevíssima, contendo apenas o resgate de uma anotação de Charles Baudelaire, um sonho ou visão, em um papel que Calasso declara como “indatável”. Nessa anotação, Baudelaire diz ter visto a queda de uma torre, um enorme edifício, queda essa ignorada pelas “nações”. Calasso faz o paralelo com as Torres Gêmeas e o 11 de setembro e encerra o livro.
Na primeira parte de L’innominabile attuale, Calasso disseca a categoria do Homo saecularis, ou ainda, a presença do secularismo na sociedade moderna, as relações possíveis entre as categorias sociais e as categorias religiosas e como essa tensão permanece e se intensifica hoje (especialmente nesse confronto do título, “turistas e terroristas”, aqueles que cultivam a mobilidade e aqueles que abominam a mobilidade – seja dos corpos, seja dos costumes). “Homo saecularis é inevitavelmente turista”, escreve Calasso, e continua: “Zapping e link formam vasta parte de sua vida mental. São operações preexistentes, que um dia alcançaram a configuração indicada nos dois termos. Bouvard e Pécuchet já as praticavam, sem necessidade de recorrer a qualquer suporte técnico”.
A segunda parte do livro apresenta uma coleção de citações, comentadas e editadas por Calasso. “Não são lembranças”, ele escreve como introdução, “mas palavras escritas, publicadas, ditas, referidas, registradas nos dias entre o início de janeiro de 1933 e maio de 1945”. Das várias fontes disponíveis, Calasso seleciona, por exemplo, os diários de Ernst Jünger (o momento em que fica sabendo dos campos de extermínio) e de André Gide (sua insistente defesa de Hitler e Stálin), as cartas de Walter Benjamin e de Louis-Ferdinand Céline (suas amantes, sua fuga), as cartas de Beckett escritas durante sua viagem de meses através da Alemanha em 1936. Calasso completa: “Todas as imagens daqueles anos, de qualquer proveniência, exalam algo de hipnótico. Foi o auge do preto e branco, no cinema e na vida. Quando aparece o technicolor, parece uma alucinação. Era como se o tempo tivesse formado uma espiral cada vez mais estreita, que terminava em um estreitamento”.
Um dos principais atrativos da escrita de Calasso é a capacidade que tem de fazer do leitor uma sorte de participante. Isso ocorre muito mais por conta daquilo que não é dito do que por conta do que é apresentado pelo crítico. Ou seja, trabalhando a partir de lacunas e elipses, Calasso faz o leitor preencher os espaços vagos a partir de seu próprio repertório (como a antiga máxima que diz que a música se dá nos silêncios entre uma nota e outra).
Com isso em mente, sou surpreendido por outro livro, logo depois de terminada a leitura de L’innominabile attuale, uma obra não mencionada por Calasso mas que serve perfeitamente em seu argumento. O livro em questão é Nas sombras do amanhã, de Johan Huizinga, traduzido e publicado em português pela editora Caminhos no fim de 2017. A data original de publicação – 1935 – posiciona Huizinga no centro do período considerado por Calasso, e o subtítulo – “um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo” – dá conta também da proximidade de tom e interesses. Apesar dos mais de 80 anos separando os dois textos, o contato fortuito entre Calasso e Huizinga na minha “programação de leituras” fez saltar um ponto em comum: ambos buscam o “atual”, o “presente”, sempre em confronto com o passado e com suas expectativas, calibrando aquilo que foi outrora desejado com aquilo de fato alcançado.
Huizinga, que já havia publicado O outono da Idade Média em 1919 e ainda publicaria Homo Ludens em 1938, organiza Nas sombras do amanhã a partir do encadeamento de 21 breves capítulos. Seu objetivo é analisar a realidade europeia até o momento, atravessando questões como o decadentismo, o marxismo e o totalitarismo. Como o material é originário de uma conferência, ainda mantém o frescor da apresentação oral e a dinâmica de seu registro ensaístico. Assim como o Freud de 1930 (O mal-estar na civilização), Huizinga transita continuamente entre os polos “civilização” e “cultura”, “vida do espírito” e “vida material”. Huizinga antecipa certas ideias de Walter Benjamin sobre a “reprodutibilidade técnica” (ensaio que sairia em 1936), especialmente quando comenta o uso político da publicidade e certo “enfraquecimento da faculdade do juízo”, visível também no campo da arte: “vemos a produção artística em geral encerrada num círculo vicioso em que o artista fica preso à publicidade e, por meio dela, também à moda, ao passo que estas duas se prendem ao interesse comercial”, escreve Huizinga.
A leitura de Huizinga, contudo, me colocou em um círculo virtuoso de reminiscências: pois se Calasso, ao falar da nossa contemporaneidade dos “turistas e terroristas”, retorna à década de 1930 em busca de Simone Weil, Beckett e tantos outros, a ausência de Huizinga parece quase deliberada, tendo em vista o aparecimento de Nas sombras do amanhã – que faz o círculo girar ao buscar em Erasmo de Roterdã (1466-1536) ou em Rousseau (1712-1778) a perspectiva necessária para pensar o contemporâneo em 1935.
Uma vez envolvido nesse círculo virtuoso de leitura – iniciado pelo contato entre Calasso e Huizinga e seus esforços análogos de captura do presente –, comecei a repassar, quase de forma paranoica, certas coincidências em livros lidos ao longo de 2017. Um desvio em direção à literatura me parece não só salutar, mas condizente com a argumentação de Calasso e Huizinga – que atravessam totalitarismos e terrorismos com o objetivo último de alcançar a resistência e persistência da cultura e da arte. Nessa busca, me vem à mente uma coincidência percebida em 2017: o aniversário de quatro romances publicados 155 anos antes, em 1862, Os miseráveis, de Victor Hugo, Salammbô, de Gustave Flaubert, Pais e filhos, de Ivan Turguêniev, e Memórias da casa dos mortos, de Dostoiévski.
Depois de passar por Calasso e Huizinga, daí retirando a lição que o passado não cessa de passar e de ser reconfigurado e ressignificado, a coincidência do aniversário desses quatro romances não me parecia gratuita. Relendo-os aos poucos, percebi neles uma série de ressonâncias, de temas sensíveis ao nosso “inominável atual”: de Turguêniev, o choque de gerações, o permanente atrito entre progresso e manutenção; em Victor Hugo, o confronto entre o pequeno e o grande, entre a riqueza e a pobreza na sociedade ao longo da história; em Dostoiévski, o horror do indivíduo diante das arbitrariedades do estado de exceção; em Flaubert, uma versão detalhista do fascínio pelo Oriente, uma semente do “choque de civilizações” típico dos séculos XX e XXI.
Os quatro romances apresentam aquilo que W. G. Sebald, em seus ensaios sobre literatura austríaca, chama de “patografia dos tempos”, ou seja, o registro escrito do pathos que atravessa as épocas. As prisões na Sibéria no caso de Dostoiévski, a opressão familiar e social no interior da Rússia em Turguêniev, o assédio a Cartago nas Guerras Púnicas em Flaubert, as barricadas e os esgotos de Paris em Victor Hugo: no caso desses escritores, imaginar uma ficção que confronta os traumas de uma época é também imaginar uma forma de vida possível, para além do “real” e do “histórico”, e é precisamente essa vida possível que repercute ao longo do tempo, 155, 156 anos depois. Precisamente o tempo e sua espiral de que fala Calasso em L’innominabile attuale.
Por via de uma ética supersticiosa de leitor sou levado a crer que tenho mais a aprender sobre o contemporâneo com Flaubert e Dostoiévski do que com outros, mais próximos, que escrevem no calor da hora. O que não me impede de ler e reler Calasso, inviabilizando o argumento e me forçando a tudo recomeçar, agora que coloco o ponto final.