Arquitetura imaterial

De repente, a própria imponência do prédio (a dimensão inumana, mais pra nave extraterrestre do que propriamente pra navio) já não me permitia ver nele outra coisa além das relações entre a arquitetura e o poder. E seria até muito educativo se nas formas se vislumbrasse algum tipo de crítica ou ironia. Os arquitetos dizem que todo o prédio foi concebido em função da música e da acústica (a sala principal deve muito à Filarmônica de Berlim, desenhada por Hans Scharoun, em 1956). Mas no lugar da música eu só via – maravilhado, tenho que concordar (e não é esse o objetivo?) – um monumento ao poder.

John Marcher ao avesso

E o que eu fiz com esses dez anos? O que fizemos? É tempo pra burro, é nada. Acho que eu sofro de uma espécie de johnmarcherismo às avessas, Chico. Se o protagonista do Henry James passa a vida ensimesmado à espera da fera, do mistério, e acaba sem fazer porra nenhuma – nem um trato na pobre da May Bartram -, acho que eu consegui não só descobrir, mas também criar as minhas feras nos últimos anos.

Bergman de trás para a frente

A televisão brasileira, aberta ou fechada, costuma ser um esgoto a céu aberto. Mas de vez em quando surge na programação um diamante puro que a redime, ao menos por algum tempo. É o caso da Mostra Bergman que o Telecine Cult está exibindo nas noites de sábado e do último domingo deste mês. Como Fellini ou Buñuel, Bergman é mais que um país ou um continente: é todo um planeta. Cobrindo duas décadas da carreira do cineasta, a mostra do Telecine explora uma parte significativa desse território.

As duas expressões de Clint

Exagerar às avessas: a expressão que o ator Clint Eastwood usou certa vez para definir seu trabalho em Por um punhado de dólares talvez possa ser tomada para definir também o trabalho do diretor Clint Eastwood. A brincadeira irônica de Sergio Leone – para ele, Clint era um ator de duas expressões, uma com e outra sem chapéu – talvez possa se estender ao gesto essencial da câmera dos filmes de Eastwood.

Mecanismos internos

Em um debate, o escritor João Silvério Trevisan, quando indagado sobre a relação entre escrever e narrar, discorreu sobre uma crise de representação pela qual passamos e sobre a busca pela forma ideal de dar conta de nossa realidade complexa e fragmentada. O autor também alertou que estava acontecendo um retorno aos modos tradicionais e realistas de narrar: alguns escritores, em pleno século XXI, voltavam a simplesmente contar histórias.

Na fome de leitura, o apreço à ciência

Daniel Piza foi atilado leitor. Na topografia natural de sua sala havia permanente cordilheira de livros, como Edmundo Leite flagrou para o site do Estadão no dia seguinte de sua inverossímil ausência. De tempos em tempos Daniel removia para a redação montanhas de livros, avidamente disputados. Aquela barafunda continha a ampla latitude de sua curiosidade intelectual, servida no que ela tinha de melhor e pior em sua coluna dominical.

O que não se sabe sobre Daniel Piza

Há algumas palavras que quase não se veem, raramente se escutam, parecem ter existido antes para depois não se mostrarem mais presentes. Assim como as pessoas, uma hora está. No instante seguinte, resta apenas a ausência. Panegírico é uma palavra assim. O panegírico exige que se pense uma ação pelo ponto de vista daquele que agiu. O que se procura é uma essência. Daniel Piza, morto no dia 30 de dezembro de 2011, deixa a mulher Renata e os filhos Leticia, Maria Clara e Bernardo. É assim que os obituários expõem o fato. Essa é uma essência. Diante dessa essência, um panegírico, a que isso serve?

Intercâmbio cultural

Depois de nove meses gozando do sentido de ordem dos alemães, fui passar o Natal no Rio. E o que é que nove meses, a levar pito de velhinhas toda vez que atravessava a rua com o sinal de pedestres fechado (e sem nenhum carro vindo de lugar nenhum) ou pegava a ciclovia na contramão ou atravessava na faixa de pedestres sem desmontar da bicicleta, fizeram comigo? Já não sou capaz de ver nada além de sexo nas ruas (e ciclovias) do Rio.