As razões para eu ter medo de aeroporto são bem menos saborosas do que as razões para você ter paura de avião. Apenas a chateação habitual. Filas, extravio de malas, demoras, atrasos, cancelamentos. Certa vez, por causa de uma tempestade de matar gente, passei oito horas no Aeroporto de Congonhas, esperando a ponte aérea ser desobstruída. Já estava lendo as etiquetas das minhas roupas para fazer passar o tempo. Em fevereiro último, porém, descobri um aeroporto que não me causou aversão. Tinha de ser do outro lado do mundo. Narita, no Japão. Na chegada, a impressão já tinha sido muito boa.
Roteiro? Pra que roteiro?
“O problema brasileiro é a falta de bons roteiros.” Quantas vezes você ouviu essa frase? A formulação tem décadas de existência, mas de quando em quando é requentada, como quando se faz a inevitável comparação entre filmes argentinos e brasileiros e se chega à conclusão de que a superioridade deles está nos roteiros. É até possível que seja verdade, mas desconfio que se trate de uma falsa questão. Um filme que suscita uma discussão interessante a propósito do tema é o fascinante O céu sobre os ombros, premiado longa de estreia do mineiro Sérgio Borges, que acaba de entrar em cartaz.
O mestre-sala dos ares
Peguei uma turbulência, voltando de Belo Horizonte, que abriu os armários da nave satânica e milhares de coisas rolaram com estrépito pelo maldito corredor. Dessa vez foi o João Bosco quem me deu umas talagadas de meu próprio cantil mágico porque eu me encontrava em estado semicomatoso. Achei que estávamos rachando em pleno ar e minha pressão caiu. Dentro de aviões, minha pressão arterial é conhecida, hoje, como Neymar.
David Foster Wallace e LCD Soundsystem – por Antônio Xerxenesky
O dilema de DFW reside em como compor um texto que ao mesmo tempo reconheça as inovações formais dos modernistas sem esquecer as grandes questões morais dos realistas do século XIX. O dilema de James Murphy, do LCD Soundsystem, está em criar canções que falem ao coração do ouvinte, lutando com todas as unhas contra a autoconsciência paralisante de um artista que sabe muito bem que suas canções são mesclas calculadas de suas influências musicais e que utilizam recortes de outros músicos.
Sabedoria pedestre
Nossas cidades coloniais me comovem. Ouro Preto, Tiradentes, Paraty… Olinda não entra na lista porque, entre as muitas falhas de meu caráter, está a de não conhecer Pernambuco. A primeira razão para comoção é que, percorrendo-lhes as ruas, não consigo deixar de pensar que algo se perdeu na arquitetura, ao menos temporariamente, e em especial a partir de meados do século XX. Nenhuma arte “evolui” ou “involui” de fato: apenas muda, adequando-se aos meios materiais e às circunstâncias sociais de novos tempos.
Cenas do planeta botox
Câmera nervosa, moderna, efeitos distorcidos. O “olho de peixe” dá a medida da vertigem. Mulheres acima dos 50 anos, na maioria. (…) Uma lousa branca, quadro-negro contemporâneo. Um rosto, um nome, um letreiro. Outro nome, outro nome, outro letreiro. Palavras aparecem, nos escritos da lousa. Corrupção. Desigualdade. Elites. (…) Os rostos vão se derretendo, como os relógios de Dalí (Magritte?) e se recompondo, a partir de protuberâncias, tubérculos de rostos compostos por frutas e legumes de Arcimboldo.
Contra a urucubaca e o escárnio
Minha carta passada recebeu dois tipos de reclamação: um verdadeiro irmão ficou triste porque eu não escrevi o nome de seu time, o Flamengo. Quero esclarecer que não tenho problemas com o Flamengo, mas sim com a canalha que se apropriou da brincadeira Fla-Madri para faturar um troco. Eu sei quanto fui zoado. Talvez alguns não lembrem que o jogo Vasco x Real Madri foi de manhã cedo. O volante Nasa, provando definitivamente para que servem os tais cabeças de área, jogou contra o patrimônio.
Ficção sem teoria – quatro perguntas para Tatiana Salem Levy
Em 2007, aos 28 anos, a escritora brasileira nascida em Lisboa Tatiana Salem Levy estreou como romancista com o elogiado A chave de casa. Um ano depois, o livro ganharia o Prêmio São Paulo de Literatura na categoria autor estreante. Com a narrativa concentrada em dilemas familiares, Tatiana angariou críticas positivas e se firmou entre os mais talentosos ficcionistas brasileiros contemporâneos. Quatro anos depois, a autora retorna às prateleiras com Dois rios (Record), seu segundo romance.
O que me interessa
Um poema revelou-se intransponível ao Paulo [José]. Um dos raríssimos poemas de Drummond que Paulo não sabe de cor (“A máquina do mundo”). “Não sei a exegese do poema”, disse, angustiado. Saiu da prisão do palco e veio andar pela plateia, bengala em punho, ler o poema que ia sendo projetado em letras imensas no filó. Embate de titãs: o ator luta para alcançar a expressão do poema que o poeta realizou plenamente. Saem faíscas da ponta da bengala na direção das palavras, de tão elétrico o embate.
O que devemos aos gregos
Primeira das três tragédias filmadas por Cacoyannis – as outras duas foram As troianas (1971) e Ifigênia (1977) -, Electra propõe uma imagem fiel a sua origem teatral. Trabalha o quadro e a movimentação dos intérpretes dentro dele num estilo próximo àquele adotado por Eisenstein na metade da década de 1940 em Ivan, o terrível. As filmagens foram feitas em cenários naturais, mas não registram a paisagem e as pessoas diante da objetiva, de acordo com a prática neorrealista então dominante; ao contrário, transforma, deforma.
