Sororidad

Em processo

03.05.18

 

Por um balaio de motivos, dos práticos aos patológicos, escrevo ficção muito devagar. Tenaz, essa lentidão acabou transformando o que seria meu novo romance em um livro com três narrativas independentes. O título do conjunto, por ora, é Ficção, e não faço a menor ideia de quando ficará pronto. A primeira das narrativas se chama Sororidad e narra as histórias entrecruzadas de uma mulher com disforia de espécie – nasceu humana, mas se identifica como cabra – e de um grupo de argentinas que, ao serem abandonadas nas estradas do Rio Grande do Sul, se unem para criar uma comunidade rural isolada do resto do mundo. Começa assim:

 

01.

A única coisa que não tem limites é a ignorância, todo o resto acaba cedo ou tarde encontrando seu contorno. Quando era criança eu achava que a neve era uma coisa inventada, como os unicórnios. Mas isso foi nos anos setenta, quando ainda era comum que cães tivessem testículos. Não demorou para eu aprender na escola que não, a neve existia mesmo e era parente da chuva, e se a neve era uma realidade talvez os unicórnios também fossem, e a terra oca e as linhas de Ley e os continentes perdidos Atlântida e Mu, e os lobisomens e as sereias e os boitatás e qualquer outra coisa que pudesse ser pensada. Eu, Tanara Kraus, tinha onze anos quando me tranquei no banheiro para chamar os demônios e fazer o trato, dezessete ao fazer amizade com a Quinho tomando leite de onça na Osvaldo Aranha, dezenove ao deixar Porto Alegre e encontrar as castelhanas e a Colonia Sororidad em Barra do Ouro, vinte quando tudo acabou e agora estou chegando aos quarenta e dois. Mas uma coisa de cada vez.

 

02.

Quando Adolfina cruzou a porta da loja de conveniência e pisou na área externa do posto de gasolina, dois maços de cigarro na mão, o automóvel não estava mais lá. Estava na BR-101, entre Terra de Areia e Sanga Funda. O verão de 1992 chegava ao fim como tantos outros no cone sul da comprida América: enxames de castelhanos voltando pelas rodovias, atravessando o Rio Grande do Sul a caminho de casa após o veraneio em Torres e praias salpicadas pelo litoral de Santa Catarina. A dona-de-casa rosariense abriu a boca, olhou bem para os lados, girou sem piscar o corpo da esquerda para a direita com muita dificuldade, quase rodopiando, mas não viu nada do que desejava encontrar. Ao seu redor não havia mais automóvel nem filho e muito menos marido, apenas um posto Texaco com duas bombas e uma estrada mal conservada e uma língua estrangeira, e o sol não deixava dúvidas de que pretendia brilhar daquele jeito por mais algumas semanas, e a solidão espremeu Adolfina como a uma esponja suja.

 

03.

O ser humano é o único bicho que precisa amadurecer, os outros animais apenas crescem. Somente humanos sofrem da compulsão de encontrar, definir e encenar identidades, e também se encontram solitários no reino animal em seu instinto de tecer histórias e usar narrativas como ferramenta. Em todo o resto são como os outros bichos: em algumas coisas mais, em outras menos, como em qualquer família grande. O crânio humano abriga um cérebro volumoso em atividade perpétua, a jaula das costelas protege um coração que mantém o sangue em movimento e o corpo vivo para raciocinar, sentir, perder o controle, tomar as rédeas. Humanos pensam sobre o que sentem, ruminam a emoção para além do primeiro impacto orgânico, revivem tudo uma, duas, cento e vinte e três vezes até que se torne algo diferente, menos concreto, mais real. Há quem defenda existir oposição entre cognição e emoções, entre homem e mulher, entre humano e animal, entre ossos e vísceras, entre isto e aquilo. Mas qualquer oposto não passa de uma ilusão situacional, do ângulo certo em pouco diferem o crânio e o coração. É tudo uma coisa só, que respira.

 

04.

Norma Lucía pediu que o marido esperasse com o carro no acostamento enquanto ela ia buscar gasolina no posto mais próximo. Ainda faltavam quase mil quilômetros para chegarem em Venado Tuerto, na província argentina de Santa Fe. Ela se sentia mais à vontade em movimento, mesmo usando as próprias pernas, e não perdia oportunidades de descansar do silêncio do marido. Dois quilômetros de ida em linha reta pela BR-290, charla animada em portunhol com o atendente e uma garrafa de Pepsi com um litro de gasolina, suficiente para resolver a pane seca e avançar com o carro até o posto seguinte, na entrada de Minas do Leão. Dois quilômetros de volta pela rodovia carregando a garrafa e então: nada. Caminhou mais setecentos metros para ter certeza. Nada do carro, e da carranca do marido nem as rugas. Norma Lucía sentou no acostamento vazio, coceira na orelha esquerda, uma gota de suor gelado na ponta do nariz, enchendo os pulmões com o ar pastoso do verão gaúcho e sentindo da garganta à ponta da língua um gosto de sangue, velha demais para ter nascido. Sorriu.

 

05.

Começou quando entendi que eu tinha dedos por engano. Talvez tenha começado antes, pode ter nascido comigo, quando fui me tornando alguma coisa dentro do útero da minha mãe. Lembro de estar com uns cinco anos, porque era na casa de Curitiba, tinha o biombo na sala e eu estava sentada no tapete persa, farejando pipoca na cozinha. Estendi as mãos diante do rosto, olhei para os meus dedos e pensei: mas por quê? Por que isso? Nos pés descalços, a mesma coisa. Não fazia sentido. O correto seriam quatro cascos, estruturas córneas fortes, reluzentes. Mas nas minhas extremidades havia dedos: nas mãos uma dezena de palitos, nos pés dez tocos sem função. Com o tempo, olhando do jeito certo, até comecei a ver os cascos. Mas os outros não. Só viam dedos. Um dia comentei o assunto com a minha mãe, que riu e disse: mas são dedos, minha filha. Com unhas redondinhas, olha bem, ela insistiu. Que você vai deixar crescer e pintar com esmalte quando for mocinha. Dedos, Tanara. Mesmo que dali em diante eu apenas me comunicasse através de balidos, tudo que todos enxergariam seria uma menina, uma garotinha fazendo graça, e não o desespero sem linguagem de uma cabrita parida no corpo errado.

 

, , , , , , , , , , ,