Steve Tesich (1942-1996)

Marko Rakocevic

Steve Tesich (1942-1996)

Todo mundo mente

Filosofia

19.12.16

Everybody lies”, a frase-slogan do lendário Dr. House, protagonista da série homônima de imenso sucesso entre 2004 e 2012, foi repaginada e alçada à categoria de palavra do ano, a tal “pós-verdade”, anunciada pelo Dicionário Oxford como o melhor termo para definir 2016. Profético, House há mais de uma década já fazia uma (auto)crítica do modelo de sociedade norte-americano, instituído como aquele que diz toda a verdade, por pior que seja. Ao decretar que “todo mundo mente”, House se incluiu no grupo “todo mundo” e teve muitos problemas éticos e legais no fascinante exercício de uma profissão destinada a conseguir o impossível – salvar as pessoas da morte.

O Dicionário Oxford detectou que o uso do termo “pós-verdade” – empregado pela primeira vez em 1992 pelo dramaturgo sérvio-americano Steve Tesich – , cresceu 2000% em 2016. Políticos, eleitores, médicos, jornalistas, amigos, inimigos, todo mundo mente na era da pós-verdade. E, o que parece ser ainda pior, dizer a verdade já não tem mais a menor importância. Em tempos de vida social regida pelos algoritmos da rede, o que interessa são menos os fatos e mais os afetos  que regem nossos humores. É mobilizando medo e esperança que os governos se erguem e eventualmente se sustentam.

Ao escolher “pós-verdade” para definir o inclassificável ano de 2016, Oxford iluminou um problema que vem de longe. O termo chega para se somar a pós-utópico, pós-história, pós-moderno, pós-feminista, pós-metafísico, para ficar apenas com os mais famosos. Em todos há pelo menos uma questão em relação ao uso do prefixo “pós-”, no qual o hífen ganha função importante. Elemento silencioso da linguagem, o hífen ao mesmo tempo separa e faz com que cada termo possa conservar sua significação inicial e única, promovendo uma superação dos dois significados iniciais.

Embora “pós-” pareça querer dizer que houve uma superação – da verdade, do feminismo, das utopias, da metafísica, da modernidade – é insuficiente para nomear uma transformação, na medida em que o novo termo conserva aquilo que teria sido superado. Nos anos 1980, por exemplo, pós-utópico ou pós-história foram cunhados para tentar dar conta do fim das utopias libertárias e socialistas que supostamente teriam se encerrado com a queda do Muro de Berlim, em 1989. Falharam, seja porque quem acredita em utopia não desistiu delas, seja porque quem não acredita no fim da história inventou novas formas de luta política – coletivas, anárquicas, críticas dos sistemas representativos etc. Nos anos 1990, pós-feminista também pretendeu nos convencer que o fim do século XX seria o fim dos movimentos feministas e suas bandeiras de emancipação e igualdade. No refluxo, veio a quarta onda feminista e desbancou qualquer pretensão dos discursos de fim dos feminismos, mais ativos do que nunca (na serrote 24, “Erguer, acumular, quebrar, varrer, erguer…”, artigo meu sobre as ondas feministas).

Seguindo nessa batida, pós-verdade seria o fim de um debate na filosofia pelo menos desde que, em 1797, o alemão I. Kant publicou o pequeno texto “Sobre um pretenso direito de mentir por amor aos homens“. De forma muito resumida, seu argumento de condenação absoluta da mentira é óbvio e ao mesmo tempo inalcançável: basta uma pessoa mentir e nunca mais teremos como saber a diferença entre verdade e mentira. Para refutá-lo, outro alemão, F. Nietzsche, escreveu “Verdade e mentira num sentido extra-moral” e percebeu que “no desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da história universal, mas foi apenas um minuto.” Como um filósofo que dizia já ter nascido póstumo,  Nietzsche teria seu texto de juventude, escrito em 1873, enfim reconhecido em 2016 no termo pós-verdade do Dicionário Oxford. Conhecer a verdade, já dizia ele, é só mais uma ilusão humana como outra qualquer, má notícia para os que acreditavam nela até agora.

Trazendo de volta o debate para o século XXI – que século! –, penso que se a verdade tivesse mesmo acabado, precisaria ser chamada de outra coisa que não contivesse a palavra verdade. De certa forma, o termo “pós-verdade” continua apontando para um tipo de verdade – cínica, eu diria, como na crítica à razão cínica de outro filósofo alemão, Peter Sloterdijk – que nem se mantém nem está totalmente superada. Na experiência cotidiana, estamos todos diante da impossibilidade de distinção entre verdades e mentiras – da timeline do Facebook ao noticiário, dos discursos dos políticos aos programas dos candidatos, da publicidade aos grandes juristas, do plebiscito inglês que promoveu o Brexit ao futuro presidente dos EUA, Donald Trump, do Congresso ao STF, numa lista infinita de exemplos que 2016 não nos deixará esquecer tão cedo.

Restam algumas tábuas de salvação para quem ainda aposta na verdade. O Facebook, sempre ele, anunciou um projeto internacional  de checagem as notícias que veicula. Começa pelos EUA, claro, e quando chegar ao Brasil terá entre os fact-checkers [checadores] – esses novos heróis do jornalismo – a Agência Lupa, primeira agência brasileira de atuação no mercado de informações criado pela era da pós-verdade. Aos checadores se juntam hackers e ciberespiões, cuja função política tem sido desencavar informações sigilosas das profundezas dos sistemas e dos bancos de dados, como fizeram os russos nas eleições norte-americanas. A história foi contada pelo New York Times. Há dez anos atuando no vazamento de informações, a WikiLeaks fundada pelo ativista Julian Assange tem contribuído para transformar o verbo “vazar” – que já circulava como gíria, algo como “se manda” ou “dá o fora” – em ato político na era da pós-verdade. Vaza, 2016!

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