A despeito dos quase trinta anos que os separam, A trilogia de Nova York (1987), do norte-americano Paul Auster, e Quem matou Roland Barthes? (2015), do francês Laurent Binet, têm muita coisa em comum. Ambos manipulam os clichês de certa literatura de gênero — o romance policial — em narrativas calcadas na ideia de investigação.
Mesmo com os detalhes e nuances que diferenciam um do outro, é possível falar em romance policial, de detetive, de mistério, de crime. Seja qual for o termo empregado, o que se tem, de modo geral, é aquilo que o uruguaio Mario Levrero chamou de “romance fechado”, uma vez que “os enigmas propostos devem ficar perfeitamente resolvidos” — caso contrário, o livro “fracassa e dá raiva”.
O romance de detetive popular se manteve fiel a uma fórmula simples. Um crime, que na maior parte das vezes é um assassinato, mobiliza uma dupla de investigadores. Ou os dados iniciais são confusos e frágeis, ou os fatos conhecidos parecem incriminar um único sujeito. Na ficção de gênero, diferente do que ocorre na vida real, sabemos que é improvável que o culpado seja aquele para quem todas as evidências apontam. Um após o outro, indícios e suspeitos vão sendo examinados e interrogados. A prova decisiva não raro é obtida de forma acidental. O livro termina com um longo discurso em que o detetive principal descreve as armadilhas e as fases do esforço investigativo: enquanto enaltece discretamente o próprio poder de dedução, ordena e classifica os eventos em benefício do leitor. Toda causa é simples, todo efeito é verificável.
Veja um romance menos conhecido, mas em tudo tradicional, de Agatha Christie. O ponto de partida de Poirot perde uma cliente, de 1937, é o assassinato de uma velhinha. Entre os possíveis culpados estão três sobrinhos, duas amigas e a dama de companhia da mulher. “Suspeite de todos”, aconselha Poirot, o famoso detetive de Christie que tenta, acompanhado do fiel Hastings, desvendar o caso. Narrador do livro, Hastings não deixa de ser um mero mediador entre o detetive, verdadeiro condutor da trama, e o leitor. A mesma estratégia adotaram Arthur Conan Doyle e Edgar Allan Poe, que aproveitaram os personagens secundários para descrever os passos de, respectivamente, Sherlock Holmes e C. Auguste Dupin. Toda a racionalização, no entanto, cabe aos detetives de renome.
Como nota Ricardo Piglia em O laboratório do escritor, o romance policial tradicional se beneficia do fetiche da inteligência pura. A figura do detetive é onisciente: sua lógica imbatível faz com que ele acredite na possibilidade de conhecer cada detalhe de um caso. Segundo Poirot, detetives só precisam “pensar e analisar os fatos”.
Ainda que em um sentido diferente daquele empregado na crítica literária, a leitura de um romance policial não deixa de ser uma investigação da linguagem. Quando o narrador descreve Poirot diante de um vidro de veneno ou de um quadro na parede, simulando o que, para os personagens, seriam objetos palpáveis em um cenário palpável, o leitor tem diante de si apenas as palavras impressas na página. Cabe à autora — utilizando o limitado Hastings como par de olhos e boca — apresentar cada uma das evidências em uma ordem específica e sob uma luz ora favorável, ora desfavorável.
É o que nota Paul Auster em A trilogia de Nova York, que reúne três narrativas de inspiração detetivesca sutilmente interligadas. Na primeira, um autor de romances policiais chamado Daniel Quinn (mesmas iniciais de Dom Quixote) assume a identidade de um detetive particular. De uma hora para a outra, Quinn é arrastado para o vórtice de uma situação mirabolante como as que costumava imaginar e descrever. Na medida em que aumenta a complexidade do caso, as expectativas do leitor são deslocadas de uma possível resolução para outros aspectos da trama. As andanças e divagações do personagem passam a ocupar o primeiro plano. Boa parte dos pensamentos de Quinn são dedicados ao gênero literário que Paul Auster procura manipular. “No bom livro de mistério, nada é desperdiçado, nenhuma frase, nenhuma palavra que não seja significativa. E, ainda que não seja significativa, ela tem o potencial para isso — o que no final dá no mesmo”, diz o narrador. “Uma vez que tudo o que é visto ou falado, mesmo a coisa mais ligeira e trivial, pode guardar alguma relação com o desfecho da história, nada deve ser negligenciado.”
Ainda que cada elemento do romance policial tenha um peso, é um peso distinto daquele que costumamos atribuir aos das narrativas, digamos, abertas. “O detetive é quem olha, quem ouve, quem se movimenta nesse atoleiro de objetos e fatos, em busca do pensamento, da ideia que fará todas essas coisas se encaixarem e ganharem sentido”, escreve Auster. No gênero policial, o sentido de cada palavra ou frase é dado a partir de uma função e de um contexto específicos, ou seja, do crime cometido e da necessidade de resolução. Na literatura mais ampla, porém, o sentido não é tão claro.
Empregar alguns dos recursos e temas de romances policiais em uma literatura mais aberta, como fez Auster, não é novidade. Com mais ou menos sucesso, muitos autores, Piglia entre eles, questionaram ou ampliaram as possibilidades da escrita ao tomar emprestados alguns dos lugares-comuns de enredos investigativos. Da solução, o valor passa a residir na investigação em si. Quase todas as experiências revelam a relação complexa, mas estreita, entre investigação e signos, investigação e linguagem, investigação e literatura.
Não é coincidência que boa parte dos personagens do monumental Os detetives selvagens, do chileno Roberto Bolaño, sejam poetas ou ávidos leitores de poesia. Enquanto os real-visceralistas Ulisses Lima e Arturo Belano andam à procura de Cesárea Tinajero, o leitor, apesar de intuir que não haverá uma saída para o caso, permanece atento a todos os detalhes do universo criado por Bolaño. 2666 também flerta com o detetivesco — e não apenas ao registrar a série de assassinatos de mulheres na fictícia Santa Teresa. Na primeira parte do calhamaço, quatro críticos literários iniciam uma busca por um autor alemão esquivo.
Na entrevista de 1984 reproduzida em O laboratório do escritor, Piglia admite que sua obsessão sempre foi o não dito, o ponto cego. Segundo o argentino, a linguagem literária é a “arte do implícito”, de modo que aquilo que se deixa de fora importa tanto quanto o que se narra. Gosto especialmente de uma comparação que Piglia faz em seguida. A crítica literária, diz, é “uma variante do gênero policial”. Piglia vê o crítico “como detetive que tenta decifrar um enigma, ainda que não haja enigma”. Quanto melhor a narrativa, penso eu, mais difícil e mais divertida é a tentativa de decifrar o tal enigma. “O grande crítico”, diz Piglia, “é um aventureiro que se move entre os textos em busca de um segredo que, às vezes, não existe.”
Até certo ponto, Piglia ecoa postulados de Roland Barthes em Crítica e verdade. Barthes vê a literatura como interrogação, como escritura que levanta perguntas “sem nunca a elas responder”. Como prática investigativa, a crítica é também um ato de “deciframento infinito”. É o atrito entre a linguagem (crime) do autor (criminoso) e a do crítico (investigador corrompido, corruptor e não raro incompetente, viciado em rosquinhas, embora estes adendos sejam todos meus e não de Barthes) que define a crítica. Similar à lógica, diz Barthes, a crítica não quer descobrir verdades, mas validades. É outra sorte de atividade detetivesca, em que algo pode ser considerado válido se constitui “um sistema coerente de signos”.
Veja Quem matou Roland Barthes?, de Laurent Binet, cujo título original é La septième fonction du langage, ou A sétima função da linguagem. É justamente um documento que descreve a sétima função da linguagem, percebida por Roman Jakobson, que diferentes facções de intelectuais perseguem ao longo da narrativa. De modo geral, o documento instruiria o portador na arte de persuadir e manipular — desde um indivíduo isolado até grandes multidões. É fácil prever os usos políticos e publicitários daquilo que logo passaria a ser uma espécie de arma perigosa. Na ânsia obter o documento, os personagens — entre eles John Searle, Louis Althusser e Bernard-Henri Lévy — podem até cometer um ou outro assassinato. A primeira morte, gatilho de toda investigação, é justamente a do crítico Roland Barthes. É significativo que seja Barthes, “cuja profissão consiste em observar e analisar”, a estar no centro da trama. Entra em cena o policial Jacques Bayard, que não por acaso recebeu as mesmas iniciais de Jack Bauer, da série de tv 24 horas. Bayard não compreende os jargões do meio universitário pelo qual Barthes circulou — estamos no início da década de 1980 —, e se dá conta de que necessita de “um tradutor para todas essas cretinices”. Encontra Simon Herzog, um jovem doutorando, professor de semiótica para alunos de comunicação. A semiologia, nas palavras de Simon, “é uma disciplina que aplica os processos da crítica literária a objetos não literários”.
Nesse sentido, um romance policial tradicional tem muito a ensinar. Basta aprender a ler. E é fundamental que os autores, por sua vez, saibam bem onde estão pisando — ou onde seus personagens estão pisando. Flávio Carneiro resumiu bem os desafios que a escrita impõe. “Num bom romance, policial ou não, o cenário não pode ser só aparência. Ele é um signo fundamental. O detetive é leitor da cidade”, diz. Mas o encontro da teoria e da prática nem sempre funciona, e não é preciso ir muito longe para encontrar um mau exemplo. Basta lembrar de Possessões, romance policial de Julia Kristeva publicado em 1996. Kristeva — que desempenha um papel fundamental em Quem matou Roland Barthes? — não é bem-sucedida ao transpor uma enorme quantidade de conceitos e informações para a ficção. Narrado por uma jornalista francesa, o livro, cujo foco é o corpo decapitado de uma mulher, alia longas digressões teóricas a uma narrativa estática, forçada, incapaz de convencer o leitor.
No início de Quem matou Roland Barthes?, quando, em uma sauna, os gemidos que vêm dos quartos escuros emulam um coro grego, já é possível intuir as referências que Laurent Binet passa a manipular em seguida. Simon e Jacques não demoram a descobrir a existência do Clube Logos, dedicado a promover disputas oratórias entre os membros. Nelas, dois concorrentes devem defender pontos de vista opostos diante de juízes e uma plateia de iniciados. Vence aquele que, com o poder da retórica, conseguir convencer a audiência. Alguns competidores parecem sofistas desesperados. É impagável a cena que mostra o discurso de livre-associação do filósofo francês Philippe Sollers, uma barafunda ilógica que ele tenta recobrir com verniz de seriedade. Em outra cena, uma contenda em que dois concorrentes debatem a palavra falada e a palavra escrita, Laurent Binet emula uma passagem do Fedro. (Que Jacques Derrida, outro filósofo que foi parar nas páginas do romance, utiliza em A farmácia de Platão.) A investigação da linguagem não foi um dos pilares da filosofia grega, mas é onde tudo começa. Se Binet usa o Fedro, Auster tenta retornar ao problema da origem das palavras, algo possível de ser intuído no Crátilo.
Quem matou Roland Barthes? não é o único romance de inspiração detetivesca a retornar aos clássicos. Publicado no início da década de 1990, A história secreta, da norte-americana Donna Tartt, tem como narrador um singular estudante de grego. Na primeira página, Tartt já entrega quem assassinou quem. É uma boa inversão do silogismo, uma vez que a narrativa começa pela conclusão para então passar às premissas. Nada é assim tão simples, porém, e não é possível dizer que as tentativas do personagem de descrever o que se passou iluminem cada aspecto dos fatos e da subjetividade dos personagens. Há ambiguidades e zonas cinzentas. Como em uma tragédia grega, no centro do palco estão as ideias de culpa e punição.
Quando autores dispostos a experimentar com a literatura de gênero deslocam o foco da resolução — de um crime, de um desaparecimento, de uma transgressão qualquer — para a investigação, não raro o resultado é instigante. A primeira narrativa de A trilogia de Nova York termina com uma conversa entre Daniel Quinn e Paul Auster (em uma mistura de romance de detetive e autoficção) sobre Dom Quixote. Quem matou Roland Barthes? também irá desembocar, e em um momento decisivo, em uma referência a Cervantes. Tanto Auster quanto Binet utilizam um gênero popular para brincar com a volta que o romance é capaz de dar sobre si mesmo e seus pares — os jogos com a autoria, as referências a outras obras, a própria obrigação do leitor de preencher lacunas. Tudo já se encontra, bem ou mal, em forma embrionária ou desenvolvida, no Quixote. Cervantes parodia os livros de cavalaria, brinca com a figura de Cide Hamete Benengeli, faz o romance girar e girar mais uma vez. Não raro, porém, Dom Quixote é considerado apenas um livro que conta uma boa história.
Para Daniel Quinn, aquilo que “interessava nas histórias que escrevia não era sua relação com o mundo, mas a sua relação com as outras histórias”. Northrop Frye costumava ressaltar que qualquer tipo de alusividade faz parte do caráter simbólico, e portanto fundamental, da literatura. Mas nem todos estão dispostos a entrar na brincadeira. Um alvo constante da desconfiança dos leitores é o catalão Enrique Vila-Matas, que coleciona críticas de quem exige, quatrocentos anos depois de Cervantes, a volta da boa e velha arte de contar uma história. O mais interessante é que todos os personagens de Vila-Matas são curiosos, buliçosos, investigadores natos. Há sempre um mistério nos livros de Vila-Matas — esse mistério ontológico que a literatura vem tentando pôr em palavras há séculos.
Para alguns, é como se toda experimentação formal, digressão extensa ou exercício metaliterário prescindisse de uma história, ou como se uma boa história fosse apenas um encadeamento compreensível e previsível de ação, diálogos e uma quantidade moderada de reminiscências. Se a intensificação das críticas a esses procedimentos é uma resposta ao narcisismo ou ao artificialismo que imaginamos identificar em nosso tempo, também é uma maneira de limitar a ficção e de barrar a exploração das fronteiras entre o isso e o aquilo. Basta lembrar que já é possível ler correspondências, diários, notas de viagens, reportagens e ensaios como literatura.
“Muita gente acredita que um escritor original se inspira diretamente na vida e que só os escritores vulgares ou de segunda mão se inspiram em livros. É bobagem”, disse Northrop Frye. Descrevi, no início deste texto, o mecanismo do romance policial tradicional, cujas engrenagens, apesar de meio enferrujadas, se mantêm em pleno funcionamento. A exata medida do romance policial continua a ser ele mesmo, embora finja — às vezes com grande habilidade — manipular tudo o que escaparia à nossa atenção no mundo real.
Nada no clamor para que nossos autores voltem a “contar uma boa história” faz sentido. Mesmo a literatura comercial, ainda que sem qualquer engenho e de forma torta e tênue, diz algo sobre si mesma. A crítica só ajusta o espelho que já estava ali. Auster compreendeu. No segundo relato d’A trilogia de Nova York, um detetive, Blue, é contratado para vigiar um escritor, Black. Como Black passa o tempo todo sentado à escrivaninha, Blue, que o espia pela janela, decide ler um livro. É assim que Blue se dá conta de que os relatórios que escreveu ao longo de anos de trabalho como detetive eram exatos, mas pobres. “Nenhuma referência ao clima, nenhum comentário sobre o trânsito, nenhuma tentativa de adivinhar o que o elemento podia estar pensando”, diz Blue. Ele descobre a literatura.
Segundo Ricardo Piglia, não há romancistas sem teoria. É possível duvidar disso até certo ponto — Amós Oz garantiu que “o quintal da filosofia e da teologia está entulhado de esqueletos de romancistas e poetas que quiseram competir com filósofos e teólogos” —, mas não totalmente. Um autor, mesmo de romances policiais mais banais, precisa compreender o poder da linguagem: deve saber conduzir, manipular, aludir, armar e desarmar. Ao separar Poirot de Hastings, precisa saber o que entregar e o que ocultar. A própria ingenuidade, a espontaneidade e o anti-intelectualismo constituiriam, segundo Piglia, uma espécie de teoria. Contudo, alerta, é uma teoria já serviu para arruinar muitos escritores.
Elementar, meu caro Watson.
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Deixa comigo: Rocco, tradução de Joca Reiners Terron. A Trilogia de Nova York: Companhia das Letras, tradução de Rubens Figueiredo. O laboratório do escritor: Iluminuras, tradução de Josely Vianna Baptista. Quem matou Roland Barthes?: Companhia das Letras, tradução de Rosa Freire d’Aguiar. A imaginação educada [Northrop Frye]: Vide Editorial, tradução de Adriel Teixeira, Bruno Geraidine e Cristiano Gomes. Como curar um fanático [Amós Oz]: Companhia das Letras, tradução de Paulo Geiger.