Lima Barreto em 1919

Lima Barreto em 1919

Lima Crispim, João Barreto

Literatura

05.09.17

Enquanto o mercado recebe duas biografias de peso (o lançamento de Lima Barreto — Triste visionário, por Lilia Moritz Schwarcz, e uma nova edição de A vida de Lima Barreto, escrita por Francisco Assis Barbosa em 1952) e várias outras publicações sobre a vida e a obra de Lima Barreto, o primeiro livro a colocar o autor como protagonista segue fora de catálogo há 95 anos. Editado em 1922 pelo então jovem Enéas Ferraz (1896–1977), História de João Crispim não é exatamente uma biografia do escritor, mas um roman à clef, cuja composição do protagonista deve tudo à sua trajetória. Trata-se de uma preciosidade esquecida e abandonada da nossa literatura, que o crítico Wilson Martins, no quarto volume de sua “História da inteligência brasileira”, chamou de “o único retrato verdadeiramente vivo de Lima Barreto”.

Amigo e discípulo de Lima, Ferraz resolveu criar, em seu romance de estreia, um personagem ficcional à imagem do mestre. Orgulhoso, trágico, incompreendido e beberrão, João Crispim leva uma vida dupla: articulista de jornal e filósofo da sarjeta. Assim como o autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, é mulato — traço fundamental de seu destino. Para horror da classe beletrista, se arrasta de bar em bar após o serviço, desperdiçando sua cultura e suas boas ideias em lugares suspeitos. Como não lembrar de Lima Barreto e suas bebedeiras épicas, sua persona maltrapilha e autodestrutiva?

Ferraz, que mais tarde seguiria carreira de diplomata e publicaria os  hoje esquecidos   Uma família carioca e Adolescência tropical, também se coloca no livro. Ele é Afonso Pina, um jovem jornalista que se torna melhor amigo de Crispim. Juntos, tomam porres homéricos, arrotam digressões raivosas e lançam dardos na intelligentsia carioca. Os alvos da dupla são os mesmos de Lima: o arrivismo coelhonetista, o nacionalismo tosco, o academicismo dominante…

A premissa agradou tanto Lima que este cobriu para o amigo os custos da limitadíssima edição de 100 exemplares  — na verdade aumentou ainda mais as suas dívidas, pegando emprestado um dinheiro que não tinha. Morreria meses depois do lançamento, embora de forma menos espetacular que o alter ego. Desorientado pela bebida, Crispim é esmagado por um automóvel num sábado de carnaval. Já Lima, destruído pelo alcoolismo, tem um infarto na cama, em um Dia de Todos os Santos (e é enterrado num Dia de Finados).

Ao que tudo indica, Lima se via no personagem criado por Ferraz e estava ciente da homenagem. Afinal, anos antes, ele mesmo havia assinado algumas crônicas sob a máscara de João Crispim. A história do pseudônimo é misteriosa –  outros contemporâneos de Lima, como Mário Brant, também o utilizaram em colaborações na imprensa. Carlos Drummond de Andrade, amante dos disfarces e autor de um inacabado dicionário de pseudônimos da literatura brasileira, chegou a assinar crônicas como Antônio Crispim.

Ferraz, por sinal, não procura esconder a sua inspiração. “Tipo forte de quarentão”, Crispim é um decalque do Lima Barreto precocemente envelhecido dos anos 1920.

 (…) a estatura um pouco atarracada,fazia lembrar uma daquelas figuras de ouro escuro, de um deus chinês, maciço e gorducho, sentado entre duas colunas de um templo cheio de sombra e de silêncio. A cor, dum rosado fosco, assim como o cabelo, preto e onduloso, revelavam-lhe logo a raça mestiça. A cabeça grande, quase desproporcional; a testa larga e alta, era toda a expressão de sua fisionomia: os olhos de um castanho claro, abertos, rasgados, um tanto empapuçados pela vida irregular e agitada, tinham essa vivacidade triste e irônica dos intoxicados; o nariz era tão pequeno que passava despercebido, e o bigode preto e caído, escondendo os lábios grossos, dava ainda uma outra expressão à sua face bochechuda, onde uma barba rala e falha estava sempre por fazer; no alto, ao lado das fontes, o cabelo embranquecera de todo. A primeira vista era um tipo feio, exótico, quase repugnante.

A descrição detalhada não é acidental, já que o corpo vem a ser um elemento importante na construção da imagem pública de Lima. Assumindo sua “feiura”, incorporou-a à história de sua infâmia, para salientar sua incompatibilidade e exclusão. É como se tivesse transformado o seu físico decadente, destruído pelo vício e pelo fracasso (e automaticamente rejeitado por sua cor), numa experiência de body art. Em sua “corpografia” de Paul Verlaine, o historiador Alain Buisine chama a trajetória do poeta francês de “dolorosa performance suicida”. Com o componente do racismo a mais e o da homofobia a menos, não é muito diferente do que fazia Lima/Crispim ao desfilar por um Rio de Janeiro ascético e higienizado, mostrando aos homens de bem que nem tudo podia ser varrido de suas vistas.

Ferraz não parece assustado com as zonas de sombra de seu personagem. Não o trata com piedade ou indulgência, mas simpatiza com a graciosidade improvável de sua luta – ou melhor, de sua derrota antecipada, que nada mais é do que triunfo do fracasso sobre o sucesso. Além do mais, cenas que costumavam chocar muitos de seus pares são descritas sem nenhum moralismo ou sensacionalismo. Os instantes selvagens de crise mental que precedem as internações psiquiátricas de Crispim, por exemplo – que, até nisso, aliás, reprisa Lima e suas passagens pelo manicômio – têm um caráter generoso e tragicômico.

Era fantástica a sua vida durante essas crises. Cinco, seis, sete, dez dias, ninguém o via mais no jornal, e esquecido de voltar a casa, vagabundeava todo esse tempo pela cidade, sem despir-se uma só vez sequer, sem um banho e sem mesmo um pouco de água no rosto, quase sem comer, quase sem dormir, imundo, barbudo, enxovalhado, bêbado, um louco perfeito, cuja única maldade era parar nas horas intensas do dia, a cada esquina e a cada botequim, sorrindo e discursando aos transeuntes, e, à noite pelas ruas desertas e caladas, ir monologando para si próprio as coisas estranhas e talvez profundas que lhe rolavam no espírito e na alma…

Ferraz parece um escritor naturalmente atraído pela morbidez, mas o que lhe interessa, na verdade, é mostrar a beleza que ninguém vê. Vinte e cinco anos depois do romance de estreia, ele lançaria o livro de contos Crianças mortas, que, como o título indica, coleciona enterros infantis. Mais uma vez, penetra na superfície macabra e tira dela ternura e poesia. Porque, como notou Alcântara Silveira numa crítica do livro em 1947, as crianças morrem puras, antes de conhecer a maldade humana. Não veem o mundo que tanto torturou João Crispim.

A julgar pelas resenhas da época, as semelhanças entre Crispim e Lima passaram mais ou menos batidas pela imprensa da época. Alceu Amoroso Lima, também amigo do escritor, foi um dos poucos que mencionaram a conexão entre os dois. Já Terra de Senna chamou Crispim de “boêmio incorrigível, pernóstico, imitador de Lima Barreto”, demonstrando sua antipatia tanto pelo modelo quanto pelo personagem. Sérgio Buarque de Holanda, por outro lado, compara Crispim a Diógenes Bárbaro. Os críticos mais elogiosos, porém, preferiram se ater ao realismo do romance e ao seu estudo de costumes (que, de fato, é uma pintura vibrante da belle époque carioca).

O próprio Lima Barreto, num perdoável conflito de interesses, desmanchou-se em elogios ao livro em “O paiz”. Fazendo questão de mencionar a questão racial na trama, parece entender como ninguém o ressentimento e a dor íntima do personagem que ele mesmo inspirou: “Há, nessas almas, nesses homens assim alanceados, muito orgulho e muito sofrimento. Orgulho que lhes vêm da consciência de sua superioridade intrínseca”, nota.

Lima, que sempre comprou briga com a intelectualidade de seu tempo, também arrisca um (auto)diagnóstico: “A sua significação era insurreição contra tudo e contra todos”. E, fascinado por Crispim, vê o personagem eclipsar todas as outras figuras do romance. “É livro de um tipo só”, decreta. Ainda mais perturbador é lê-lo comentar a morte melancólica de seu alter ego, sem saber (ou talvez já desconfiando) que teria o mesmo destino em seguida.

Escritor autorreferente por excelência, Lima aproveita uma de suas últimas colaborações na imprensa para, mais uma vez, falar de si, analisando sua própria natureza torta através de um personagem de ficção. Nada muito diferente do que já havia feito em seus romances, mas há, aqui, nesse exercício de projeção, nesse estranho e um tanto perturbador jogo de espelhos, um comovente tom de despedida, de balanço final.

Enéas Ferraz  foi um dos poucos escritores que apareceram no enterro de Lima. Dias depois, escreveu um obituário digno de nota em O Paiz. “Esse mestre do romance brasileiro, que a morte acaba de levar, era um mulato sujo e borracho, que os literatos, quando estavam na Avenida, fingiam em não o ver passar (…) Felizmente para ele, cético e vagabundo filósofo das ruas, tudo já lhe era mais ou menos indiferente”. O homem descrito tanto poderia ser Crispim quanto Lima. Na emotiva despedida do amigo, modelo e personagem se tornaram um só.

Além de nunca ter sido reeditado, o livro não aparece nos sebos virtuais – todavia, um exemplar pode ser encontrado na Biblioteca Nacional. Se hoje a associação entre Crispim e Lima é indiscutível, resta a pergunta: por que essa importante peça do quebra-cabeças Lima Barreto continua tão esquecida, até mesmo no ano da volta triunfal do escritor?

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