Sigmund Freud em 1907

Sigmund Freud em 1907

Trabalho de luto

Filosofia

31.10.18

“É digno de nota que nunca nos ocorre considerar o luto um estado patológico, nem encaminhá-lo para tratamento médico, embora ele acarrete graves desvios da conduta normal da vida. Confiamos que será superado depois de algum tempo e consideramos inadequado e até mesmo prejudicial perturbá-lo”, escreve Freud no clássico “Luto e Melancolia” (1917). Quando fala em “depois de algum tempo” deixa em aberto a medida desse tempo, e essa abertura talvez seja o melhor antídoto contra o que considero um dos maiores clichês do luto, repetido ao infinito: “a vida continua”, como se uma grande perda devesse e pudesse ser encarada com grande naturalidade.

Faz parte do trabalho de luto uma partilha do sentimento de perda com pessoas próximas que já tenham passado por isso. Ouvem-se muitas sugestões, e a maioria só serve para cada um descobrir que precisa encontrar seu próprio caminho, pois o que funcionou para uma pessoa não necessariamente vai funcionar para outra. Outro texto de Freud, “O efêmero” (1915), também traduzido como “Da transitoriedade”, estabelece um diálogo com um interlocutor imaginário, o melancólico que lamenta tudo que está acabando. Luto sim, melancolia não, poderia ser uma reescrita do título freudiano. Na modernidade, a melancolia se tornou uma espécie de maldição a ser exterminada. Seria o luto inacabado de um passado que já deveria ter passado.

Não se eu tomar como inspiração a filosofia de Walter Benjamin, pensador que, reconhecendo a presença do passado no presente e no futuro, percebe que o novo não se estabelece como completamente novo, nem o antigo desaparece sem deixar rastros. Benjamin, muitas vezes lido como um melancólico incurável, foi um pensador extraordinário ao perceber os traços que marcavam, diante dele, as passagens da tradição para a modernidade, do passado para o futuro. Hoje talvez pudesse perceber, como faz Paulo Arantes no brilhante O novo tempo do mundo (Boitempo, 2014), a passagem do presente para a ausência de futuro.

No luto, ouvir pode ser uma atividade essencial. Na verdade escolher o que ouvir, não escutar qualquer bobagem e saber o que não ouvir também é decisivo, pois diante das grandes perdas os clichês parecem muito reconfortantes. Há, por exemplo, o “seja forte”, como se essas palavras tivessem o poder mágico de eliminar nossas fraquezas. Nada mais falso. Num processo de luto, a falta de sentido da existência se exacerba, a concentração para pequenas ou grandes tarefas desaparece e sobra raiva, muita raiva.

Aprendi que, de fato, não existe nada que possa ser feito para se organizar emocional e internamente para uma grande perda. Não adianta saber que ela vai acontecer, pois só depois do acontecido é possível dar início ao luto como ele se apresenta. O filósofo Giorgio Agamben compara o luto ao estado de exceção: “os períodos de luto são, frequentemente, caracterizados por uma suspensão e uma alteração de todas as relações sociais”, escreve em Estado de exceção (Boitempo, 2002, tradução de Iraci D. Poleti). A condição de enlutado é esse estado de exceção, uma espécie de tempo à parte, em que tudo se move em outro ritmo. Se é verdade que o luto é um estado de exceção, é também um pouco verdade que estar de luto é como estar doente, como uma convalescência. As atividades rotineiras e necessárias – trabalhar, atender compromissos profissionais, cumprir prazos etc – exigem um dispêndio redobrado de energia. Nesses momentos, bate uma profunda saudade da vida antes da perda.

Em certa perspectiva psicanalítica, o luto é entendido como um processo de constituição simbólica daquilo que se perdeu no real. Mas se o simbólico ainda está sendo constituído, com que linguagem falar? Essa língua muda, essa ausência de significante, esse buraco que o real abre no simbólico, tudo isso faz parte do trabalho de luto, que carrega uma circularidade. Vai, volta, melhora, piora, avança, recua, flui, reflui. No processo de luto sente-se muito medo, quaisquer vulnerabilidades e desamparos pesam mais. Tudo dói, e tudo dói mais do que o normal. Começar de novo, reconheço, também é um clichê do luto. Mais um, mas por alguma razão, esse tem sido o único que me produz algum desejo em meio à total falta de sentido.

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