Nos dois primeiros volumes da série Minha luta, o norueguês Karl Ove Knausgård descreve as dificuldades de conciliar a escrita com a rotina de pai de família atento ao jantar e à roupa suja. Se Knausgård fosse mulher e apresentasse queixas idênticas em primeira pessoa, argumenta Siri Hustvedt, os seis livros não teriam alcançado o mesmo sucesso.
É difícil discordar do raciocínio de Hustvedt, desenvolvido em um ensaio incluído em A Woman Looking at Men Looking at Women [O olhar de uma mulher sobre o olhar dos homens sobre as mulheres]. Hustvedt ainda expõe, de forma indireta, as circunstâncias que regulam e restringem o trabalho de muitas escritoras — mulheres que não têm com quem dividir as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos. Para além das condições materiais que facilitam ou dificultam a feitura de um livro, existem outras, mais difíceis de mensurar, que interferem na publicação e na recepção do trabalho.
Inscritas em um contexto mais amplo de lutas feministas, surgem em resposta a estas e outras questões iniciativas voltadas para a leitura e a discussão de livros escritos por mulheres. Muitas derivam de #ReadWomen [#LeiaMulheres] campanha criada há quatro anos pela escritora e ilustradora Joanna Walsh.
Estamos falando de uma série de projetos e ações de dimensão e alcance variados, que — embora onipresentes e unidos pela necessidade de promover a literatura escrita por mulheres — nem sempre coincidem em todos os aspectos.
Mas, de modo geral, três coisas têm me chamado a atenção.
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As expectativas e as leituras reducionistas que sempre acompanharam de perto os trabalhos das autoras mulheres não foram suprimidas, apenas se modificaram. Em alguns casos, os livros se tornam dispositivos simplificados e de fácil manuseio/desmonte, como se apenas alguns elementos e interpretações fossem identificados e autorizados. Não pretendo confundir ações e estratégias — algumas comerciais — com a construção de significados em torno de um livro, algo que é, no geral, feito de outra maneira e em outros espaços. Mas me pergunto se não devemos buscar modos diversificados e mais amplos de leitura para, se for o caso, assegurar a liberdade de criação das autoras mulheres.
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Algo que emerge do mesmo caldo, acompanhado das melhores intenções, é o conceito pernicioso de “literatura feminina”. Lutamos tanto contra estereótipos para recair em um dos piores. A tradutora e escritora Ivone Benedetti publicou um bom texto sobre o assunto aqui.
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Muitas editoras têm tentado responder a essa espécie de demanda — que não pode ser subestimada ou superestimada. Alguns livros já trazem, como certificado de qualidade, um selinho feminista na capa. Nem sempre a preocupação com o contexto acompanha a estratégia, e escorregar em inconsistências e anacronismos, reduzindo um livro de uma autora a um rótulo, é apenas um detalhe. Um dano colateral.
No meio disso, algumas ausências importantes são sentidas — autoras excelentes cujos livros, por vários motivos, estão fora de catálogo ou nunca foram traduzidos. São nomes nem sempre vendáveis, de autoras clássicas a contemporâneas, às vezes associadas ao experimentalismo, que ficam à margem do circuito mais conhecido.
A certa altura de 10:04, Ben Lerner questiona se as editoras, diante da necessidade de se reinventar de forma constante, estariam mesmo dispostas a converter capital real (livros com boa saída) em capital simbólico (que dão brilho ao catálogo, mas vendem pouco). Para que haja a abertura ao capital simbólico, deve primeiro haver o real. Isso significa que nem sempre se pode fazer apostas arriscadas. É impossível desvendar as pequenas variáveis que acompanham as escolhas do mercado editorial, especialmente quando envolvem as dificuldades básicas de publicar livros em um país em que pouco se lê. E é um erro, além disso, achar que as lacunas se restringem a livros escritos por mulheres.
Mas é inevitável pensar no que é admitido e no que fica de fora dos catálogos. Cito com frequência “A pessoa certa para o trabalho pode ser uma mulher… e outros pensamentos alheios sobre ação afirmativa na academia”, um ensaio em que Susan Haack se posiciona contra as ações afirmativas pela contratação de mulheres em universidades estrangeiras. Haack leva em conta as dificuldades que marcam a experiência das pesquisadoras, mas insiste que a obrigação de contratar uma mulher leva alguns departamentos a escolherem a candidata “menos ameaçadora” ou a “especialista em filosofia feminista”, deixando de lado aquelas que talvez sejam talentosas em outras áreas, da lógica à filosofia medieval. Haack diz que precisamos de estratégias mais eficazes, que identifiquem e respeitem a complexidade do cenário.
A presença de uma não é, ou não necessariamente, a causa da ausência da outra. E estamos falando de literatura, algo bem mais escorregadio do que a filosofia. Ainda assim, apenas uma boa variedade de livros escritos por mulheres — diversos em temáticas, abordagens e estilos — pode nos dar uma dimensão do que estamos produzindo.
No mesmo ensaio em que fala de Knausgård, Siri Hustvedt conta que deixou um jornalista chileno pasmo ao revelar que estudou psicanálise e neurociência por conta própria. Ele acreditava que Paul Auster, com quem Hustvedt é casada, fosse o responsável pela educação da mulher.
Mesmo com todas as ações e projetos, ainda estamos muito distantes do tipo de equidade que desejamos. Se é dificil entender de que maneira e em que grau os trabalhos de mulheres são desdenhados por editores e leitores, tambem é difícil — e talvez prematuro — tentar compreender como a demanda por livros escritos por mulheres têm impactado nossa produção, leitura e discussão. Mas nada nos impede de detectar e mudar o que não nos convém.
É tarefa nossa abrir espaço para que uma mulher interessada em neurociência não cause, com sua presença e seus livros, espanto ou desdém, estranhamento ou indiferença.