“O sonho acabou; quem não dormiu no sleeping-bag nem sequer sonhou.” A frase da canção de Gilberto Gil talvez seja uma maneira de resumir em poucas palavras o espírito de No intenso agora. Qualquer descrição ou sinopse será empobrecedora e ilusória, inclusive esta: o documentário de João Moreira Salles, exibido no Rio e em São Paulo no festival É Tudo Verdade, organiza e discute imagens filmadas na China maoísta de 1966, na França de maio de 1968, na Tchecoslováquia da Primavera de Praga e no Brasil da ditadura militar.
O filme todo se constitui, portanto, de material de arquivo (pessoal ou público), comentado de viva voz pelo próprio diretor. O resultado é uma obra complexa, com várias camadas e inúmeras implicações possíveis, a partir de alguns eixos fundamentais, que vou tentar apontar aqui.
Há, por um lado, desde as primeiras imagens – filme doméstico de uma família passeando por uma rua carioca –, uma reflexão acerca de tudo aquilo que a câmera revela a despeito, ou mesmo à revelia, das intenções de quem a opera. Naquele registro anônimo aparentemente singelo e inocente manifestam-se, ao olhar atento, sinais de toda uma estratificação social e configuração cultural. O social e histórico se infiltra sutilmente no íntimo e pessoal. O público invade o privado.
Nas bordas do quadro
A mesma percepção aguçada do que se mostra a contrapelo, nas bordas ou no fundo do quadro, conferindo outros sentidos à imagem, vale para os registros amadores da viagem feita à China pela mãe do diretor e um grupo de amigos em 1966, em plena Revolução Cultural maoísta. Ali, as fartas informações de cada tomada são potencializadas pelos comentários feitos à época pela então jovem senhora da elite carioca e refratadas por aqueles feitos hoje por seu filho. Aquilo que escapava então ao grupo de turistas encantados – por exemplo, o significado de cartazes e inscrições em chinês – tinge com outras cores o que eles viram sem ver completamente.
Uma operação análoga, mas de certo modo na direção contrária, dá-se no exame das imagens dos confrontos de maio de 68 em Paris. Desta vez, parte-se no mais das vezes das imagens “públicas” – de documentários, cinejornais e reportagens televisivas da época – para investigar o privado, as motivações e sentimentos dos indivíduos envolvidos na conflagração. Há uma tentativa, em geral bem-sucedida, de despir essa conhecida iconografia da pátina mítico-ideológica que a revestiu ao longo das décadas e buscar, por um lado, os seres de carne e osso que pulsavam ali e, por outro, significados que as próprias imagens contêm, mas que passaram despercebidos à época.
Eixo temporal
Esse eixo, digamos, espacial – aquilo que está no quadro e o modo como se relaciona com o que está fora – articula-se com outro, que poderíamos chamar provisoriamente de temporal: a relação do instante captado com o tempo histórico e com a eternidade. O próprio título do documentário enfatiza a ideia do breve momento que, ao concentrar em si tamanha intensidade, reverbera vida afora, para o bem e (frequentemente) para o mal.
Essa percepção aguda e dolorosa do instante fugidio, de uma felicidade radiante e irrepetível, é comum aos jovens ativistas do maio de 68, aos tchecos da Primavera de Praga, aos turistas brasileiros na China de Mao, aos estudantes cariocas que carregaram nos ombros o secundarista Edson Luiz, morto pela ditadura.
O contraste entre os ápices luminosos, em que brilham “os grandes sóis violentos” de que falava Drummond, e o cotidiano cinzento que nos toca viver depois que eles passam é insuportável para alguns, ou para muitos. No intenso agora mostra o caso de jovens “sessentoitistas” que se suicidaram aos vinte e poucos anos quando o sonho murchou. Podemos pensar em casos análogos entre os tchecos que viram sua primavera virar um inverno tenebroso, entre os opositores da ditadura militar brasileira e mesmo entre os turistas encantados com a descoberta da China.
Os usos da morte
Num documentário sobre as promessas de plenitude da vida, o tema da morte aparece como contraponto inevitável – e um dos pontos altos do filme é o cotejo entre funerais de indivíduos mortos nos conflitos na França, na Tchecoslováquia e no Brasil, desvelando os sentidos e usos da morte em cada caso.
Dada a amplitude e variedade dos temas que enfeixa, No intenso agora deixa alguns deles em aberto, outros apenas esboçados, como materiais a ser desenvolvidos posteriormente pelo próprio João Moreira Salles ou por outros realizadores. A condição social burguesa dos estudantes parisienses do maio de 68 e o caráter essencialmente masculino (machista?) do movimento são alguns exemplos, bem como a rápida transformação do espírito contestatório em artigo de consumo. Tudo isso está no filme, mas passa num instante, o que, pensando bem, talvez tenha tudo a ver com sua proposta geral.
Enfim, voltando a Gilberto Gil, “o sonho acabou – e foi pesado o sono pra quem não sonhou”. Para quem sonhou, ao contrário, o que foi pesado, e continua sendo, é o despertar.