Daniel Pelllizzari

Daniel Pellizzari

Obscuros de estimação

Literatura

03.10.16

Escrever é uma coisa, ser lido é outra. Alguns escritores dão o melhor de si, produzem uma obra consistente, e quase ninguém percebe. Outros autores fazem um sucesso estrondoso enquanto vivem e acabam esquecidos pouco depois de morrer, por motivos muitas vezes insondáveis. Se incluirmos (como se deve) as notas de rodapé e as anotações nas margens das páginas, a história da literatura é formada em sua maior parte por escritores que ninguém lê, ou que ninguém jamais leu, ou que de repente pararam de ser lidos. As manhas e humores da peneira do cânone, esta quimera, escapam a qualquer tentativa de delimitação. E mesmo o conceito de obscuro varia bastante: o desconhecido de um país pode ser a estrela de outro, e há quem fique realmente embasbacado ao saber que o autor X, que ele tanto aprecia, é um perfeito estranho para quase todas as outras pessoas.

Acaba que todo leitor dedicado, por definição um curioso voraz, acaba pesquisando autores distantes dos holofotes do mercado, da crítica ou do Zeitgeist, e formando assim, armado de simpatias muito idiossincráticas para embasar critérios de merecimento, seu pequeno batalhão particular de injustiçados. Já escrevi neste espaço sobre Daniil Kharms, um de meus soldados preferidos, e ando matutando algumas impressões para um texto sobre mais dois, a dobradinha Marcel Schwob/Pierre Michon. Com essas coisas na cachola, e sempre disposto a um bom intercâmbio de peculiaridades, convidei alguns escritores e críticos a compartilharem algum de seus obscuros de estimação com os leitores do Blog do IMS. Quase todos responderam, e graças a essa generosidade aqui estão nove autores que (quase) ninguém lê, ordenados pela ditadura igualitária da ordem alfabética:

ÉILIS NÍ DHUIBHNE (Irlanda), por Luisa Geisler
Confesso que Éilís Ní Dhuibhne chegou à minha estante tem dez minutos (dois meses). Ao terminar The Bray House fui atrás do resto de sua obra, conhecendo melhor a contista, romancista e dramaturga irlandesa, hoje Writer Fellow na University College Dublin. Nenhum dos seus livros foi traduzido para o português nem muito divulgado fora da Irlanda. No entanto, ela traz os temas mais contemporâneos possíveis, com questões de identidade nacional e de gênero. Com muita sensibilidade, constrói (e desconstrói) camadas de significado por meio de linguagem e cenário. Talvez me falte alguma perspicácia editorial para entender por que é tão desconhecida. Tudo bem que ela também escreve em gaélico irlandês, mas a qualidade literária seria suficiente para gerar uma fama de Jennifer Egan. Talvez eu só seja terrivelmente idealista? Talvez seja minha culpa? Mas a mulher é boa, that’s my point.

Luisa Geisler é escritora, e seu livro mais recente é Luzes de emergência se acenderão automaticamente (romance, 2014).

John dos Passos

JOHN DOS PASSOS (EUA), por Carol Bensimon

Um livro do John dos Passos, 1919, foi parar na minha mão de modo meio aleatório há uns anos. Terminei a leitura fascinada pelos experimentos de linguagem, que criavam um panorama muito arrebatador da Primeira Guerra. Depois é que descobri que esse romance era o segundo de uma trilogia, a trilogia USA. Os três livros são maravilhosos. Ele faz uma colagem interessantíssima, e há trechos que ficaram pra sempre na minha cabeça. Acho que o nome John dos Passos é mais ou menos conhecido, mas pouca gente lê o cara no Brasil, ou mesmo nos Estados Unidos.

Carol Bensimon é escritora, e seu livro mais recente é Todos nós adorávamos caubóis (romance, 2013).

LUÍS ARANHA (Brasil), por Joca Reiners Terron

Meu escritor que ninguém lê é o poeta modernista Luís Aranha (São Paulo, 1901-1987), autor de Cocktails, cuja única edição em livro aconteceu pela Brasiliense em 1984 graças aos organizadores, o poeta Nelson Ascher e o crítico Rui Moreira Leite. Pela brevidade de sua produção, Aranha é o Rimbaud do nosso modernismo: escreveu poemas somente entre 1920 e 1922, influenciado pela proximidade com Mario de Andrade; também pode ser comparado ao poeta francês por causa da originalidade de sua contribuição. Os principais poemas de Aranha, “Drogaria de Éter e de Sombra”, “Poema Pitágoras” e “Poema giratório” são longos e diferem dos poemas-piada típicos do período, com sua eloquência e recursos expressivos roubados de outros meios, como por exemplo o cinema, leiautes jornalísticos, reclames publicitários, telegramas etc. Também gosto do fato de os poemas estarem cheios de referências a drogas, pois Luis Aranha foi farmacêutico durante um tempo, atendendo em uma farmácia na rua São Bento. Com sua metrópole transfigurada, esses poemas estão em algum lugar entre Murilo Mendes e Roberto Piva.

Joca Reiners Terron é escritor e poeta, e seu livro mais recente é A tristeza extraordinária do leopardo-das-neves (romance, 2013).

MARCELO MATTHEY (Chile), por Antonio Marcos Pereira

Marcelo Matthey, engenheiro civil e professor, é formado também em antropologia e canta em um grupo folclórico. Escreveu dois livros inacreditáveis, a mais próxima encarnação que conheço da ambição flaubertiana de escrever um livro sobre nada: Todo esto lo escribí entre diciembre de 1987 y marzo de 1988 Sobre cosas que me han pasado (foram relançados em uma edição conjunta pela editora argentina Mansalva, em 2013). São dois diários, bastante esparsos, e quando lemos há momentos de dúvida, pois o que se lê está na fronteira entre uma espécie de estado zen de consciência e percepção e alguma forma de ensimesmamento beirando a idiotia. Ouvindo música, Matthey escreve: “Me fijé en los sonidos que hace el solista cuando no canta, sobre todo en la respiración y los quejidos“. Aqui se lê a literatura do escritor que não escreve.

Antonio Marcos Pereira é crítico literário, organizador (com Gustavo Silveira Ribeiro) do livro Toda a orfandade do mundo: escritos sobre Roberto Bolaño (2016).

MARIA JOSÉ DUPRÉ (Brasil), por Beatriz Bracher

Ninguém lê Maria José Dupré, autora realista da década de 40 do século passado, e quando se fala de seu romance mais famoso, Éramos seis, as pessoas mais velhas se recordam que alguém, algum dia, contou que houve uma novela melodramática de televisão com este nome. Dela só li este romance e gostei muito. Sua literatura não é de denúncia nem tampouco experimental, ao contrário, é uma prosa aberta e honesta, pintalgada aqui e ali por clichês. O lugar-comum que descreve o sofrimento não é retórico nem vazio, é o lugar-comum de uma família de classe média paulistana da década de 1930, é o lugar-comum de uma autora envolvida que não narra de fora a transformação da família e da cidade de São Paulo.

Beatriz Bracher é escritora, e seu livro mais recente é Anatomia do paraíso (romance, 2015).

MAX BLECHER (Romênia), por Camila von Holdefer

Vou de Max Blecher, um autor romeno que chegou até nós pela extinta Cosac Naify. Acontecimentos na irrealidade imediata é uma novelinha que li no mínimo três vezes, sem contar aquelas em que abri uma página de forma aleatória para ler um ou outro trecho. Não sei como descrever a atmosfera: é exótica, é delicada, é aflitiva. Há uma espécie de estranhamento no olhar do protagonista, e ao mesmo tempo uma familiaridade (ou talvez uma indulgência) assustadora com as próprias manias e medos.

Max Blecher é constantemente comparado a Joseph Roth, Robert Walser e até Franz Kafka. “Por essa inutilidade que me rodeia e debaixo desse céu eternamente amaldiçoado eu passeio”, escreve na página 22. “Imaginava, por exemplo, […] o encadeamento de todas as sombras sobre a terra, um mundo estranho e fantástico dormindo aos pés da vida”, na 55. “Constatava que, na minha ausência, ocorrera no mundo um acontecimento imenso e essencial, uma espécie de triste obrigação de sempre continuar — como o anoitecer, por exemplo — um trabalho rotineiro, diáfano e espetacular”, na 62. O autor ganhou mais uma edição por aqui: o romance Corações cicatrizados saiu recentemente pela editora Carambaia. Blecher, que sofria de um tipo raro de tuberculose, morreu com 28 anos, a idade que tenho no momento em que faço essa recomendação. É muito pouco para ter compreendido a vida de forma tão profunda. Ou estou sendo otimista demais com o tempo, e talvez o tempo não tenha nada a ver com isso tudo.

Camila von Holdefer é crítica literária, editora do site Livros Abertos.

PEDRO CASALDÁLIGA (Brasil), por Paulo Scott

Pedro Casaldáliga, 88, é um poeta espanhol que se transferiu para o Brasil no final da década de 1960, estabelecendo-se no Mato Grosso, em São Félix do Araguaia. Sacerdote católico adepto da Teologia da Libertação, sempre se colocou ao lado das comunidades vítimas da luta pela terra, inclusive as de etnias indígenas. Sem se deixar envolver pelas gratuidades do discurso panfletário, seus poemas assumem, com dicção peculiar, e quase como a grande pauta, a necessidade de revelação da beleza e das fragilidades da terra agredida, a irracionalidade que prepondera na amplitude espacial das áreas distantes das capitais, onde o interesse econômico é assalto, onde a lei é a força e o medo que essa força, com a conivência da polícia, dos políticos locais, dos próprios órgãos promotores da justiça, é capaz de gerar. Seu olhar estrangeiro, afetado pelo encanto e pelo espanto que só podem ser plenos em um olhar estrangeiro, detecta com precisão a omissão dos brasileiros em relação ao extermínio das nações indígenas no Mato Grosso, extermínio esse que se replica pelo país inteiro. Sua poesia explica a identidade brasileira, a recalcitrância de seus deserdados, como poucas poesias que tive oportunidade de ler.

Paulo Scott é escritor e poeta, e seu livro mais recente é O ano em que vivi de literatura (romance, 2015).

SHUSAKU ENDO (Japão), por José Luiz Passos

Ando lendo muita ficção japonesa. Entre os mais recentes, Shusaku Endo (1923-1986) me surpreendeu com O silêncio (Chinmoku, 1969), romance sobre um jesuíta português que, em 1643, após a expulsão japonesa dos missionários cristãos, resolve entrar no Japão clandestinamente, via Macau, em busca de outro jesuíta que havia abjurado e trabalha como tradutor para o xogunato da época. O missionário clandestino é traído por um dos seus seguidores e acaba tendo um destino semelhante ao seu antecedente, com quem se reencontra num capítulo de arrepiar os cabelos. O romance reconta o drama da figura de Judas, mostrando como a fé, o comércio e a tradução pressupõem a presença do traidor como elemento essencial. Endo é autor de outros romances que misturam ficção e história. Um deles, O samurai (1980), conta a vida de um samurai enviado ao México e a Roma, em 1613, numa missão falida para estreitar os laços culturais e comerciais entre o Japão e o ocidente católico. O samurai é convertido mal e porcamente, e acaba vivendo o resto da vida assolado por temores e dúvidas.

José Luiz Passos é escritor, e seu livro mais recente é Romance com pessoas – A imaginação em Machado de Assis (ensaios, 2014).

YANNICK HAENEL (França), por Michel Laub

Não li outros livros de Yannick Haenel, mas um deles basta para que se preste atenção nesse escritor: Jan Karski – o homem que tentou deter o Holocausto (Record). Um romance difícil e corajoso em mais de uma frente. Primeiro, por fazer uma ficção humanizante em cima de uma figura algo heroica, o agente da resistência polonesa responsável por avisar Roosevelt da existência de campos de extermínio em seu país. Depois, pela forma híbrida e curiosa. A primeira parte é uma reprodução quase literal do depoimento de Karski a Claude Lanzmann no documentário Shoah. A segunda é uma biografia do personagem em tom jornalístico/enciclopédico, com uma sequência de fatos extraordinários narrados com distanciamento. Na parte final, entra-se na cabeça do protagonista e conta-se a mesma história, pela terceira vez, agora de um ponto de vista radicalmente subjetivo e emocional. Por causa do último terço, o livro causou um tanto de barulho na França. Por aqui, não houve polêmica – nem, aparentemente, qualquer repercussão entre leitores.

Michel Laub é escritor, e seu livro mais recente é A maçã envenenada (romance, 2013).

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